A fatídica notícia da morte do Prof. Doutor António Martins Mendes era aguardada a todo o momento. Uns dias antes, sem o saber, fazia-lhe a última chamada telefónica para Elvas, aonde se acolheu com sua mulher, Gina, para beneficiar da proximidade de seu filho, médico nessa cidade. Ele respondeu da cama com sílabas apagadas, mas nutridas da consciência do momento que se aproximava, pedindo-me para desligar porque as suas forças já não suportavam o esforço de qualquer audição e muito menos a voz. Despedi-me sem haver resposta, E, no meu íntimo, logo entendi que tinha ouvido talvez as últimas sílabas da sua existência.
A notícia chegou no dia 1 de Julho. Estava preparado para perder um grande amigo, um grande vulto da veterinária portuguesa, em todos os aspectos que enriquecem a vida, a sociedade e a portugalidade que tanto recebeu do seu labor. Pena é que, como em tantos casos, o aproveitamento de tanto empenho é recebido com um encolher de ombros que logo se manifesta nas dificuldades de editar a sua obra num volume, facilitando o acesso à consulta e ao estudo, aproveitando-a em toda a sua pujança de conhecimento e autoridade.
Mas, o meu sentimento alarga-se à companheira de toda a sua vida, Gina, cuja saúde é de há muito tempo da maior precariedade, E que a partir de agora tem de juntar à sua extrema debilidade o sofrimento que representa a maior solidão de todas as solidões expectáveis - a perda de quem para ela representava a maior força que se opunha à sua decrepitude, bem expressa à vista de todos.
FICA A SAUDADE PARA TODO O SEMPRE
Findava o último combate de uma batalha que fora exemplo de modéstia, perseverança e saber, títulos com cujos itens se consolidam as civilizações.
Também, e sobretudo, fica uma obra de grande peso específico científico e historiográfico, fazendo parte do legado deixado pela colonização portuguesa nem sempre norteada pelas melhores causas, mas que neste caso muito se fica a dever a Martins Mendes, destacando especialmente o profundo levantamento realizado em «Origens dos Serviços Veterinários de Angola» e em «A História do Laboratório Central de Patologia Veterinária de Angola», registando variadíssimas fontes de informação, num tempo em que não existia ou não era comum a Internet e os arquivos não primavam pela facilidade de consulta, publicados em Veterinária Técnica e na Revista Portuguesa de Ciências Veterinárias. Igual contributo doou a Moçambique, onde leccionou na Faculdade de Veterinária da Universidade Eduardo Mondelane, deixando um trabalho de pesquisa bibliográfica publicado sob o título «Criação dos Serviços Pecuários de Moçambique», publicado na Revista Portuguesa de Ciências Veterinárias.
Do mesmo modo, e no campo da patologia microbiana, um longo trabalho se anota sobre «A Peripneumonia Contagiosa Exsudativa dos Bovinos em Portugal», in Veterinária Técnica. Anote-se ainda «Homenagem a: Louis Pasteur (1822-1895)», por ocasião do Centenário da morte do sábio, sendo este um precioso documento de pesquisa, exigindo uma profunda análise de consulta bibliográfica. Outros trabalhos se poderiam citar. Apenas se deram exemplos.
PARA QUE TUDO ISTO CONSTE E SIRVA A CULTURA
Em minha opinião a maior homenagem substantiva à memória de Martins Mendes que se lhe pode fazer seria editar os seus escritos em volume de larga lombada para facilidade de consulta, enriquecendo a cultura portuguesa, valorizando a sua presença colonial, nem sempre encomiástica.
Martins Mendes serviu o ensino veterinário superior na cátedra da Escola Superior de Medicina Veterinária (a Casa Mãe), regressando a ela após a descolonização, deixando para trás o seu frutífero trabalho.
Os encontros que conduziram à nossa amizade começaram em Nova Lisboa, onde passei algumas vezes em estadias de semanas em tarefas de trabalho. Também em Moçambique, onde permaneci, entre outras visitas, seis meses por conta da Cooperativa dos Criadores de Gado, com a finalidade de estudar e propor acções que levassem ao melhoramento do abastecimento de leite à cidade de Lourenço Marques e ao funcionamento da Cooperativa no sector do leite, desde a produção e abastecimento domiciliário de Lourenço Marques, passando pelo transporte e processamento. Mais tarde, e com a descolonização, os meus encontros com Martins Mendes eram rotina e aí aprofundámos o nosso convívio e conversas, o que nos levou até ao fim inevitável. Há sempre um dia.
Mas... nem tudo é trabalho. Um copo em boa cavaqueira entre amigos corta a rotina e conforta a alma.
[Lx. 20.05.97 / Meu Caro Vieira de Sá / Conforme te falei envio-te as minhas últimas publicações - 5 no total. Agora vou deixar a malta respirar... eu próprio preciso também de repouso! Especial atenção merece a última, acabada de sair na Vet. Técnica. / A reunião de sábado 17 foi ótima. Bom convívio e amena cavaqueira. Bom vinho! Comida ótima e a Vossa inultrapassável hospitalidade. / Foi bom. Obrigado. Meu e da Gina. Cumprimentos nossos a tua mulher. / Um abraço amigo / do Martins Mendes] Com este cartão de Martins Mendes, escrito há 12 anos, recordo hoje um encontro de amigos em minha casa que me cobre de saudade de um tempo em que, apesar das idades já provectas, ainda nos podíamos dar ao luxo de pensar em futuros.
Hoje, a tarefa é transmitir experiência passada. O mundo não começa com cada um, como a juventude pensa.
Fernando Vieira de Sá
***
Associo-me a esta homenagem, recordando os nossos encontros nos lançamentos dos livros de Vieira de Sá e um telefonema que me fez felicitando-me por essa inicitiva editorial. Deixo aqui, também, três citações que colhi de dois dos textos a que se refere Fernando Vieira de Sá:
«Os que me conhecem, sabem que não sou especialista em questões de Ecologia. Situo-me entre os homens comuns que se preocupam com as consequências das desigualdades extremas existentes entre os países do chamado "terceiro mundo" e as grandes potências industrializadas, e com as tragédias que resultaram da simples extensão aos trópicos das técnicas agrícolas dos países avançados. Preocupo-me também, naturalmente, com os riscos tecnológicos - o risco do ozono, o risco nuclear, o risco biotecnológico.»
[«Nota Breve: A Propósito de uma Tradução», in Revista da Ordem dos Médicos Veterinários, Dezembro de 1996] «O problema é que os habitantes de provavelmente nove décimos do continente africano - o tropical que mais nos interessa - passa fome. Fome de "comida" e não apenas de proteínas de origem animal... O mesmo talvez se poderá dizer de vastas regiões de outros Continentes com populações igualmente carenciadas! A Natureza não ajuda e o Homem - "os Homens" - com ela colaboram, matando, destruindo, inutilizando. Em vez de sementes plantam minas... Vejo as imagens da televisão e interrogo-me, de aqui a quantos anos os habitantes do Afeganistão ou do Paquistão e de outros países terminados em "ão" serão capazes de produzirem aquilo que comem ou terão dinheiro que pague apenas o transporte dos alimentos que outros mais felizardos deitam para os caixotes do lixo?»
[«Cartas ao Editor (...), in Revista Portuguesa de Ciências Veterinárias (2002) Supl. 117: 1-16] «Insisto que é erro crasso decretar que os problemas (científicos, económicos, humanos, etc.) são os mesmos "desde o Minho a Timor" ou da Holanda à Indonésia ou de Cuba à China... Globalização sim... "ma non troppo"! Querer contrariar, corrigir ou modificar a natureza, ignorando suas leis, pode ser o fim dos globalizadores...»
[Ibidem] Recordarei sempre a sua extraordinária simpatia e modéstia, qualidades que só as grandes inteligências e os homens bons conseguem assumir, para nada necessitando de se pôr em bicos de pés. Luís Guerra
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