sábado, 31 de janeiro de 2009

RECORDANDO «LISBOA EM CAMISA», UM COMENTÁRIO OPORTUNO A PROPÓSITO DO DESENRASCANÇO NACIONAL

Recebemos para publicação no blogue mais um texto do incansável e muito atento Vieira de Sá, desta vez em torno do tema do, genuinamente nacional, desenrascanço. Ocasião também para recordar um dos seus livros, a que vale sempre a pena regressar, O Leite em Lisboa - História do Seu Abastecimento, editado em 1991, e para darmos uma espreitadela a um excerto de uma carta do Padre António Vieira e à deliciosa história humorística da cabra que um lisboeta instalou nas águas-furtadas de um prédio da baixa pombalina contada no Lisboa em Camisa, de Gervásio Lobato. Ocasião sobretudo para reflectir sobre os eternos problemas, de ontem e de hoje, que afectam a Cousa Pública nacional.
Aproveitamos para renovar o pedido de intervenção a todos quantos, com os seus comentários, queiram participar activamente neste blogue. Ficamos à espera e, desde já, muito agradecidos a todos os que aqui venham partilhar reflexões. OBRIGADO.


Foto das pp. 170 e 171 de Cartas na Mesa - Recordando Bento de Jesus Caraça e a «Biblioteca Cosmos», onde se refere o livro O Leite em Lisboa - História do Seu Abastecimento.

A propósito de um caricato episódio que relato em posfácio do meu livro O Leite em Lisboa - História do Seu Abastecimento [Lisboa, Clássica Editora, 1991], que se ocupa da história do abastecimento de leite à cidade, e onde se faz a resenha de uma longa lista de diplomas oficiais e resoluções da Câmara Municipal de Lisboa, cobrindo um período que vem desde 1830 a 1990, esbarra-se com um quadro metendo altas entidades oficiais e universitárias, talvez gerador de incredulidade se não fosse confirmado tim-tim por tim-tim documentalmente. Não sendo assim, poder-se-ia pensar tratar-se de plágio de Gervásio Lobato, comediógrafo e evocador dos costumes lisboetas, em que se destaca o episódio humorístico relatado no seu livro Lisboa em Camisa (a sua obra, de 1894, mais reeditada), onde a dado passo um lisboeta é forçado a comprar uma cabra, levando-a para as águas-furtadas do prédio onde vivia, na baixa pombalina. E para que o animal não estranhasse cobriu o chão com uma alfombra verde a sugerir um relvado. Já nesse tempo se lutava contra a precariedade na procura de leite, sendo o de cabra o mais consumido.

Passaram entretanto 120 anos e, contudo, em termos de desenrascanço - que é o que está em causa -, embora dentro de outro contexto mais complexo, implicando autoridades oficiais e académicas, inspirado no título de Gervásio Lobato, e embora não se trate de um livro mas tão-somente de um apontamento, lembrei-me de lhe dar o título de Lisboa em Tanga, usando a imagem que reflecte a penúria dos tempos, o que aliás não se trata de uma invenção minha, pois um Primeiro Ministro deste reino, há alguns anos, usou essa indumentária como vestimenta adequada aos habitantes de Portugal, e que eu agora adequo à capital denunciando um quadro verídico descrito em posfácio a que dei o nome de «Cesse tudo quanto a musa antiga canta».

Todo este intróito, que me pareceu necessário, vem justificar a justeza de um comentário feito pelo Padre António Vieira numa carta dirigida a Duarte Ribeiro de Macedo (diplomata e escritor, 1618-1680), datada de 5 de Setembro de 1678, que reza assim: «De resto, os portugueses não são apenas brandos no castigo dos crimes e delitos. São também excessivamente brandos na execução das leis que se elaboram, mas poucas as que se cumprem, ou por falta de persistência, ou por espírito de favoritismo. Os portugueses fazem quase sempre política pessoal. Querem Deus para si e o Diabo para os outros. Às vezes o mesmo indivíduo, que ontem aprovava uma lei, já hoje a repudia e não lhe obedece, porque ela o atinge.»

Já lá vão trezentos anos. Temos todos os recordes de conservadorismo... recorde-se BOTAS.

Todos estes fenómenos são conhecidos. Actualmente tudo se aperfeiçoou teoricamente, legislando-se para haver um Tribunal Constitucional para analisar os conteúdos legais no sentido da sua constitucionalidade.

A verdade é que, com uma frequência crónica, e porque não é obrigatória a análise prévia sobre a constitucionalidade dos textos, às tantas todos discutem a constitucionalidade do preceito. E só por exaustão é que se recorre ao parecer idóneo em sede própria (Tribunal Constitucional). Mas também pode acontecer o assunto ser resolvido a favor do mais forte, mais importante, mais altivo e pretensioso, e ninguém fala em Tribunal Constitucional, porque cada um quer ter razão... e ponto final. E, por vezes, o erro vem logo desde o alvor do processo que, em vez de começar pela consulta em sede própria, decide de cima do seu púlpito que, nesse caso, é como se fosse o tribunal. Tudo ao arrepio da Lei.

Conclusão: 1º - estamos como em 1678 por direito consuetudinário; 2º - a maior aptidão do governante ou dirigente da Cousa Pública é o desenrascanço. Escuso-me a dar exemplos, mas que os há, há.

Em Portugal, tal como a cabra de Lisboa em Camisa, pasta-se numa alcatifa verde já bastante rapada pelo pisoteio do íncola: o Zé Povinho, o das Caldas de Rafael.

Fernando Vieira de Sá

Lisboa, Janeiro de 2009

domingo, 25 de janeiro de 2009

PODER, AMBIÇÃO E GANÂNCIA

«A cegueira do poder e da ambição e ganância é outra prerrogativa do homem "racional" que os irracionais de quatro patas, de asas ou barbatanas, não possuem. Não inventaram a pólvora que tanto orgulho veio trazer ao homem. Mas, em contrapartida, não destruíram o planeta como o tal "inteligente" está fazendo com toda a força e brutalidade de que nenhum irracional é capaz.»
Fernando Vieira de Sá, Viagem ao Correr da Pena, p. 31.

domingo, 18 de janeiro de 2009

CONTRA UM NOVO HINO À IGNORÂNCIA

Como resposta a um artigo de opinião publicado no suplemento «Visão História/Cuba - 50 Anos de Revolução» [nº3/4-XII-2008], da revista Visão, recebemos o seguinte texto de reacção e esclarecimento da autoria de Fernando Vieira de Sá, desfazendo a confusão, nada ingénua, que o autor do artigo estabelece entre os termos «assassino» e «guerrilheiro».

Soube por um qualquer órgão de comunicação que uma próxima edição do suplemento «Visão História», da revista Visão, seria dedicado a Cuba, necessariamente à sua revolução que, em 1 de Janeiro de 2009, completou 5o anos de idade, continuando a alimentar paixões, tanto no sentido heróico e patriótico, como no repúdio da ameaça à ordem e à paz social mantida por gente credenciada para manter a região caribeña conformada com a história e dependências que lhe calharam em sorte; e, com isso, garantindo os privilégios do vizinho acautelados. Perante este anúncio, e interessado pelo assunto, já que acompanhei a revolução desde os seus primeiros dias, igual a todos os que gostam de sentir-se cidadãos do mundo, mas também, mais tarde, por questões relacionadas com problemas que tinham que ver com algum auxílio que eu poderia proporcionar ao desenvolvimento da produção leiteira do país, na senda da revolução agrária e no âmbito da minha especialização em leitaria tropical (ver, neste blogue, as etiquetas «Lechería Tropical», «Cuba», «Ramón Castro»), logo acorri ao ponto de venda dos jornais, encomendando o suplemento da revista que saiu em 4-XII-2008, pagando 4,90 €, nada barato.
Chegado o dia D, prantei-me frente ao quiosque e, mesmo ali, por azar meu, abri o suplemento da revista pela folha final e deparei com um artigo de opinião com uma fotografia do autor, José Ribeiro e Castro, no canto superior esquerdo. De chofre, salta-me à vista esta chamada de atenção para o alvo de estimação seleccionado, qual comprimido para engolir ao pequeno almoço:

«CUSTA ACREDITAR
NA EVOLUÇÃO
DE UM REGIME QUE
TEM COMO ÍCONE
DE EXPORTAÇÃO
UM ASSASSINO:
"CHE" GUEVARA»

Agora sou eu e, certamente, muita gente a quem custa a acreditar que uma declaração deste teor possa ser proferida por alguém minimamente instruído que, desde logo, aponta para um analfabetismo visceral de quem se apresta a botar loas em questões complexas, quando ignora canhestramente os significados de «assassino» e «guerrilheiro» (todos sabem ter sido Che Guevara um guerrilheiro), que todos os dicionários definem como sendo antinómicos, com cargas morais e objectivos opostos, que não são susceptíveis de sobreposição. Só uma bacorada saída de um ignorante poderia escrever o que se lê em letras gordas neste quadradinho de prosa que acaba por se converter em diploma de inscícia do indivíduo que o escreveu. Mas, escrevendo-o, ofende o idioma (por chocarreado), ofende a própria revista, retirando-lhe probidade e decoro, cujo revisor talvez tivesse confundido «liberdade de expressão» com «ignorância», suporte de uma libertinagem que fere a verdade exigível por qualquer leitor respeitoso.
Assim, o autor prestou um mau serviço ao seu partido (assunto interno) e à Instrução Primária Nacional, que aqui se manifesta canhestramente. E foi uma má companhia para os restantes colaboradores. Cada um balizará os efeitos, de acordo consigo próprio.
É este o meu desapontamento, tratando-se da Visão onde, neste suplemento dedicado ao cinquentenário da revolução cubana, escrevem pessoas que mereceriam melhor companhia, pelo menos maior decência e alfabetização.
Só a possibilidade deste esclarecimento público, oferecido de bandeja, paga o custo da revista.

Fernando Vieira de Sá
Janeiro de 2009