sábado, 26 de julho de 2008

A DISTÂNCIA DO TEMPO

«Começo a sentir a distância do tempo.
É como se, por artes mágicas, quando tudo parecia ter acontecido ontem, fosse de súbito surpreendido no olhar para trás e, ao enxergar longínquas imagens de memórias de intemporal passado, sentisse como que um eco repercutido na abóboda de uma catedral gótica cheia de silêncio a que os vitrais dão solene transparência, fazendo-nos perscrutar passos de peregrino, misto de um vivido imaginário que, sem saber os porquês, nos captaram os sentidos transmudando o real em sonho de uma viagem sem retorno. Após tudo, o andar deambulando por esse mundo fora, surge agora abruptamente nada mais do que a sensação de esse tudo não ter sido senão um conto igual aos muitos que o velho hortelão, nas seroadas à volta da lareira alentejana, onde o tronco de azinho se consumia em brasido e borralho, contava aos meninos, para que fossem dormir, não tanto a pensar na história mas, enquanto o sono não chega, reviver o aconchego do recanto da chaminé e a entoação da voz daquele homem rude, velho, de fartas suiças avolumando-lhe as faces, que, com as suas mãos duras das calejas da enxada, chegava a si o mais miúdo de todos nós - ou o mais metediço - e o aninhava no seu colo, privilégio sempre disputado por todos. Estar sentado no colo do mestre hortelão Alcibíadas Augusto, poeta ainda por cima - e repentista - era todo um intróito para um sono sem sobressaltos.
Estou vendo-o na horta de São Bento, frente à Cartuxa em pano de fundo (que diz-se estarem ambos ligados por um túnel para os frades e as freiras se encontrarem, pois São Bento era convento de freiras e Cartuxa de frades e os dois muito devotos) com a sua sachola cuidando de encaminhar a água pelo regueiro até aos canteiros dispostos em linha, onde crescem as hortaliças, o feijão carrapato trepando pelos caniços, as beldroegas, ou os morangos quando era tempo deles, por horas a fio até o sol se sumir por detrás das últimas cumeadas que limitavam o poente para lá do alto dos moinhos. Era tempo de chegar a casa, ali a dois passos, e preparar para a ceia que não era farta. Já então a sopa fumegava e os aromas das ervas faziam a boca quando entravam pelas narinas e abriam o apetite puxando a um naco de um queijinho seco e salgado cortado com a navalha a preceito, pedindo um trago de vinho por cada pedaço cortado, uso que só o alentejano sabe gerir.
Apesar de lisboeta, a minha infância e juventude ficaram sempre ligadas ao Alentejo, desde Estremoz, Évora, Vidigueira e por aí fora onde aprendi a viver o campo...»
F. Vieira de Sá, «Prefácio de Coisa Nenhuma», Viagem ao Correr da Pena, cit., pp. 15-16

domingo, 6 de julho de 2008

«BIBLIOTECA COSMOS»

Foto: Manuel Guerra [exemplares do autor]

Reler «Os Livros do Compromisso», in Cartas na Mesa - Recordando Bento de Jesus Caraça e a «Biblioteca Cosmos», cit., pp. 121 ss. Estes dois livros vieram a lume nos meses de Maio e Junho de 1945.

Em 2005, da edição de Ecos do México - Da História e da Memória, fizeram-se sessenta exemplares numerados de I a LX e sessenta numerados de 1 a 60, assinados pelo autor, comemorativos dos 60 anos da edição destes dois livros da «Biblioteca Cosmos», dirigida por Bento de Jesus Caraça, havendo ainda exemplares disponíveis para quem os desejar adquirir.

JOSÉ MARIA ROSELL

«O autor deste pequeno livro de divulgação, Dr. Fernando Vieira de Sá, conseguiu realizar uma obra que constitui uma utilíssima contribuição para o reconhecimento público do valor da produção e consumo dos lacticínios, na saúde e economia dos povos.
Actuando pelos seus cargos oficiais na resolução dos problemas práticos e científicos que suscitam as indústrias do leite em Portugal, esta sua publicação, que tivemos o privilégio de ler antes de ser impresa, é, como outras do mesmo autor, a melhor demonstração da capacidade e autoridade já reveladas na sua actividade profissional.
A presente monografia pode bem considerar-se uma apologia equilibrada das variadíssimas utilizações do leite, como alimento ou matéria-prima aplicada em numerosas indústrias, e deveria ser lida por todos os portugueses, porque nela se descrevem por forma comprimida, mas completa, os aspectos mais modernos da lactologia actual, os lacticínios de maior interesse na alimentação, bem como alguns produtos industriais obtidos do leite. Estamos certos de que os leitores deste pequeno volume, que, se algum defeito tem, é o de não ter podido resultar mais extenso, não deixarão de o ler com o maior interesse, avaliando devidamente a razão por que todos os países progressivos dedicam os maiores esforços à propaganda e fomento das indústrias lácteas, com a finalidade de assegurarem aos seus habitantes o consumo de produtos do mais elevado rendimento biológico na nutrição.
Por termos dedicado uma parte, não pequena, da nossa vida à realização de tão fecundo objectivo nalguns países amigos, e por termos em grande apreço as faculdades de inteligência e trabalho do Dr. Fernando Vieira de Sá - nosso jovem discípulo - gostosamente acedemos a escrever algumas linhas sobre o valor nutritivo dos produtos lácteos, como introdução a este livro.
[..]»
José Maria Rosell, in «Introdução», Os Derivados do Leite na Alimentação e na Indústria, Lisboa, Edições Cosmos, Junho de 1945, pp. 5-6.
Ver referências de F. Vieira de Sá ao Prof. Rosell - lactologista catalão, médico de formação - nas pp. 124-125 de Cartas na Mesa...

sábado, 5 de julho de 2008

TESTEMUNHO (II) - «APENAS UM TESTEMUNHO»

Recebemos um belíssimo e enternecedor texto-testemunho de Angelina Barbosa, recordando os tempos de trabalho no Parque Natural da Serra da Estrela e o contacto com Vieira de Sá, Maria Elvira e netos. Aproveitamos para agradecer esta participação e para solicitar, a quem o desejar, outros testemunhos.
Apenas um testemunho

Foi há 28 anos! Ao folhear estes livros, que agora me chegaram, vem-me à memória os meus primeiros anos de trabalho no Parque Natural da Serra da Estrela.
Estava em causa o pastoreio e o queijo artesanal. Uma actividade de grande tradição e, claro, se houvesse vontade, de grande futuro.
Uma equipa de técnicos com formação social, foi chamada a elaborar um programa, faseado no tempo, com o objectivo de dar um novo fôlego a esta actividade. E um conjunto de iniciativas foram sendo concretizadas, nomeadamente, o estudo de caracterização do pastoreio e a organização de concursos para apuramento da qualidade.
Faltava a componente técnica. E surge o nome do Dr. Vieira de Sá. Um dos elementos da equipa conhecia o seu trabalho de investigação acerca do queijo artesanal de ovelha, por terras da Estrela.
Não me era estranho o nome. Soube agora que trabalhou durante algum tempo na região de Aveiro, onde nasci. Sendo duma família de agricultores então produtora de leite, provavelmente um nome referido lá em casa e captado ainda em criança.
Organizado o regulamento do concurso, fomos ao LNETI, pedir a sua opinião e também apoio de um técnico que integrasse o júri. Éramos uma equipa de três elementos. Uma ligeira espera e mandaram-nos entrar. Apresentações feitas, dissemos ao que vínhamos. Depois de alguns ajustes ao texto do regulamento, surge a frase “ Sim eu mesmo irei”. Não veio só. Da sua equipa veio também a Dra Manuela Barbosa.
“Sim eu mesmo irei”. Tudo tão simples! Situação rara neste nosso país.
Quando saímos do LNETI, estávamos entusiasmadíssimos, pela resposta afirmativa. Éramos agora uma equipa mais completa e, sobretudo, muito motivada.
E durante cinco anos, no período de Carnaval, trabalhou connosco. E sempre o acompanhou Maria Elvira, sua mulher e, quando possível, os seus netos.
Foram anos de trabalho em prol da qualidade do Queijo Serra da Estrela, uma experiência marcante, pelos resultados conseguidos, pelo muito que aprendi e, sobretudo, pela Amizade, que o tempo não conseguiu apagar, quando a vida naturalmente nos traçou outros destinos. Para mim um privilégio.
Lembro com emoção e muita saudade a sua mulher, Maria Elvira. A serenidade, a lucidez, o sorriso, a sua palavra amiga. A minha sentida homenagem.
E agora, olho estes títulos e acho que sou uma pessoa com sorte. Eu tenho nas minhas mãos as obras, com o registo de vida, que o Dr. Vieira de Sá nos quis deixar!


Reconhecida, envio daqui o meu abraço amigo.


Angelina de Sousa Barbosa

3/07/08

quinta-feira, 3 de julho de 2008

RECORDANDO BENTO DE JESUS CARAÇA E A «BIBLIOTECA COSMOS»

«O principal motivo destas páginas assentou no desejo de dar maior conhecimento, nomeadamente aos meus colegas veterinários, de um acervo de correspondência enviada por mim ao Prof. Bento de Jesus Caraça, através da qual se discutiu e balizou o interesse de incluir no programa editorial da "Biblioteca Cosmos" uma secção contemplando temas do âmbito da «Produção e Indústria Animal na Civilização Humana", contribuindo assim, não só para um maior universo de intervenção cultural popular da publicação, como ilustrando, ao vivo, a generosa disponibilidade da direcção de Bento Caraça à frente dessa sua grande iniciativa que foi a Cosmos nunca descurando o esmero ou subestimando a finalidade.
Agora, com a publicação da aprimorada obra Biblioteca Cosmos. Um Projecto Cultural do Prof. Bento de Jesus Caraça (Novembro de 2001) com que a Fundação Calouste Gulbenkian quis comemorar o centenário do nascimento de Bento Caraça, e onde se aflora tal assunto como exemplo de engajamento e participação dos colaboradores, materializadores do referido projecto, pareceu-me de todo o propósito dar a conhecer um pouco mais detalhadamente a história desse labor que, directa e indirectamente, acabou por se confundir com todas as outras colaborações vindas das respectivas áreas de expressão humana, criando assim um dos mais acabados exemplos de divulgação em língua portuguesa dos grandes temas que configuram e enaltecem a humanidade em todas as suas vertentes do pensamento e acção.»

«Nota Prévia», Cartas na Mesa - Recordando Bento de Jesus Caraça e a «Biblioteca Cosmos», Lisboa, Moinho de Papel, 2004, pp. 13-14.