domingo, 26 de outubro de 2008

JOSÉ BRANCO RODRIGUES [1912-2008]

No dia 26 de Setembro de 2008, faz hoje um mês, falecia em Lisboa José Branco Rodrigues, razão pela qual aqui deixamos um emocionado e belíssimo texto de Fernando Vieira de Sá. Tivemos também o privilégio de conhecer Branco Rodrigues, um ser humano especial na sua simplicidade e desinteressada amizade. Recordamo-lo com saudade, mas com a certeza de que o testemunho fica e perdurará na nossa memória e na daqueles a quem consigamos transmitir este extraordinário exemplo de vida.

A morte de Branco Rodrigues exerceu em mim uma sensação que nunca tinha experimentado e que se enraíza numa profunda ideia de irmandade que vem de um tempo em que, com epicentro na Europa mas com réplicas em todo o mundo, deflagrou a I Guerra Mundial.
Branco Rodrigues nasceu em 1912. Eu nasci em 1914, tempo de gestação e eclosão do grande conflito bélico (1914-1918), donde nasceria uma sociedade que alterou organicamente o statu quo ante da vida e, seguramente, actuou sobre as famílias e todo o evolutivo pensamento de que os recentes nascituros serviram de cobaias das recém-implantadas vivências.
Sem nos darmos conta disso, a verdade é que, com o desaparecimento de Branco Rodrigues, pela primeira vez senti que, afinal, o nosso encontro e conhecimento, dir-se-ia, recente, evoluiu instintivamente assente em uma aproximação oculta e temporal que agora, com a sua morte, senti que alguma coisa do meu estar alterou os estímulos da memória, dando-me a sensação de ter perdido alguém que, para mim, sem me dar conta, era tanto, como um amigo de vivências paralelas. Éramos, por assim dizer, produtos gémeos face ao alvor de uma novelíssima Nova Era nascida connosco, fazendo parte de nós.
Agora, neste particular aspecto e sem referência à época comum que nos assistiu à nascença, fiquei só, como relíquia desse mundo que nos ia formar. Nunca pensei que a sua falta neste mundo me tivesse atingido tanto por tal ausência. E, no entanto, vivemos dezenas e dezenas de anos, dir-se-ia, quase toda a vida sem nada sabermos um do outro, pois só nos vimos pela primeira vez em casa de Mário Neves [1912-1999], nascido também em 1912, um grande amigo comum, quando este caiu numa cadeira inutilizado pela doença que se arrastou fatidicamente, cumprindo a sentença de prisão perpétua que lhe calhou por acasos da existência. E nós, eu e Branco Rodrigues, cumprindo uma dívida que a amizade e o dever facultativo impõem, aí íamos fazer-lhe companhia com grande frequência, alimentando sempre uma conversa animada, esquecendo as circunstâncias que se esqueciam. Pois foi aí que de jure et de facto nos conhecemos, afinal somente quando a idade, já sem idade, nos começava a rondar a porta e nós a bater-lhe com ela na cara.
Mário Neves faleceu e nós continuámos a nossa relação, que já não tinha retorno, encontrando-nos frequentemente, incluso em Sesimbra, onde eu e Maria Elvira [1917-1999] recebíamos amigos em dias de fraternidade, o que ainda hoje faz presença na memória e na saudade, mas já com muitas baixas. O cerco aperta-se...
Mais recentemente os nossos encontros e conversas eram somente telefónicos. As circunstâncias iam-nos restringindo os espaços de manobra, ficando-nos como modesto recurso os telefonemas diários para uma saudação e já isso era um apego a todo o nosso passado de relação de amizade. A falta desse contacto diário atingiu-me, como não me passaria pela cabeça atingir os meus tempos de ocupação mental e refrescamento pela voz e pela banal notícia de «nada de novo», ajudando-nos a existir.
Branco Rodrigues era um homem especial. Vivia mais para os amigos do que para si mesmo. Era pessoa que se dedicava intensamente aos amigos, sempre atento aos aniversários, às homenagens em vida e na morte, intervindo nas celebrações de tudo o que enaltecesse alguém que o merecesse. Lembro aqui, e registo, a grande preocupação de Branco Rodrigues, desde há um ano, com a celebração do centenário do general Vasco Gonçalves [1921-2005] com o seu receio de que caia no esquecimento ou menor relevo por falta da devida antecipação na sua organização. Por isso desunhava-se em contactos, prevendo que ele poderia não estar já vivo para agitar, para dar o seu contributo e pedir o de outros. Esta seria a mais sublime homenagem a Branco Rodrigues, que, levando-a a cabo, seria sem dúvida alguma uma dupla homenagem.
Tudo isto aqui escrito lembra e homenageia Branco Rodrigues, um homem modesto, só pensando nos outros, fossem eles vivos ou mortos. A sua figura esfumava-se com total discrição. Quem lhe quisesse falar em qualquer celebração, por exemplo, teria de ir à última fila, onde o encontraria silencioso e apagado, mas sempre atento a tudo.
É com saudade e respeito que dedico estas palavras à sua memória.



Fernando Vieira de Sá
Lisboa, 26 de Outubro de 2008

sábado, 25 de outubro de 2008

INCURSÃO PELAS ARMAS - ECOS DA MEMÓRIA (VI)

[continuação]
Agora era só esperar pelo ano seguinte para me apresentar no Regimento de Cavalaria 2 - Lanceiros da Rainha, pois em tempos da Monarquia a rainha era sempre a patrona do Regimento, onde passei uma das melhores férias da minha vida, aprendendo equitação, montando os melhores cavalos e assistido pelos melhores cavaleiros da época, concursistas em torneios internacionais. Recordo com saudade as cavalgadas pelas colinas de Monsanto, pisando o mesmo solo que o rei D. Dinis percorria nas caçadas aos ursos (ainda não existia o parque), os dias no campo de obstáculos, o volteio no picadeiro, etc. Por casualidade, já licenciado, passei dois ou três meses na Estação Zootécnica Nacional, Fonte Boa, Vale de Santarém, onde continuei a montar, nessa ocasião percorrendo a lezíria, campo aberto, de uma beleza sem par, onde a vida cresce de energia e o espírito se desfaz em poesia e optimismo. Valeu a pena.
Valeu-me este passado, quando alguns anos mais tarde, em Cuba, Ramón Castro planeou uma excursão à Sierra Maestra para me mostrar lugares onde passaram as colunas revolucionárias, mas Fidel proibiu com receio de algum desastre pelo facto de eu ir a cavalo. Foi preciso eu explicar muito bem que montar a cavalo não me causava qualquer dificuldade e que, se fosse preciso, escreveria uma carta responsabilizando-me de qualquer percalço, ao que Fidel acedeu sem mais dúvidas. Venci alvos nunca premeditados.
Para concluir, este período de instrução, e fazendo uma reflexão sobre a sua utilidade, já o fazendo com a experiência que iria adquirir e que na altura estava longe de ser realidade, dir-se-ia que, honestamente, não me lembro por mais que escave a memória de qualquer coisa útil em qualquer participação, como veio a acontecer. Tirando a equitação, e por eu estar interessado no assunto, nada, nada mesmo, assimilei que me viesse a ser útil em qualquer futuro. Pareceu-me tudo um manancial de regras oficiantes a que não se ajusta uma prática onde o imprevisto é lei.
2. OS CURSOS - O curso de oficial miliciano processava-se em dois dos períodos de férias do último ano do curso. Neste caso, o meu primeiro período, como já disse, processou-se no Regimento de Cavalaria 2 - Lanceiros da Rainha. Para mim correspondeu à prática da equitação, um tempo que para mim foi de grande prazer e proveito. Não o esqueço e teve em mim um bom incentivo de teor desportivo evoluindo para outras práticas físicas. Quanto ao resto, muito honestamente, mal me lembro de qualquer lição que tivesse alguma coisa de interesse, isto do ponto de vista militar, pois as palestras, no seu conteúdo, não eram mais do que uma continuação do ensino universitário, não se acrescentando nada de especificamente militar. O segundo período passava-se no Hospital Veterinário Militar, cuja ubicação se situava a poucos metros do Regimento de Cavalaria 7, ou seja na Boa-Hora. Isto deu como resultado que, logo que me despachava dos deveres no hospital, corria para o Regimento e aí ficava várias horas até me mandarem embora. Daí ter tido a sorte de mais dois meses de prática equestre.
No Hospital repete-se a mesma continuação universitária. De alguma coisa especificamente militar, na realidade não me recordo. Toda esta orientação, que nada tinha de militar, mais tarde mostrou a sua inutilidade quando me vi em manobras e não sabia por que ponta lhe havia de pegar, dificuldades a que me referirei à frente.

Os Cães de Guerra - De todas as lições recebidas neste período de instrução já declarei atrás que tudo o que se palestrou foi de tal vulgaridade que pouco ou nada, por mais esforços que faça, ficou retido na memória. Em linguagem dos tempos de hoje chamar-se-ia a este estado de espírito o «buraco do ozono» do planeta, sendo que aqui o planeta é o nosso mundo craniano. No entanto, uma excepção é de toda a justiça relevar. Foi a palestra sobre cães de guerra, não só pelo seu intrínseco interesse (uma informação que não era conhecida) como por uma certa filosofia que da lição se desprende, como na sua avaliação em termos mais abrangentes. Por tais razões achei oportuno relatar.
A lição, como já referi, era sobre cães de guerra. O instrutor desperta logo a atenção. Assim: Corria a I Guerra Mundial, conhecida por «Guerra das Trincheiras», em que os dois países beligerantes - França e Alemanha -, frente a frente e corpo a corpo, se debatiam, saindo das suas trincheiras, pelejando em terreno de ninguém. Durou isto quatro anos de beligerância a que se Juntaram a Bélgica, a França e depois a Inglaterra, Portugal e, do outro lado, os países de Leste. No estudo estratégico da beligerância, os observadores militares e estrategos, começaram a ter dificuldades em descobrir como os exércitos do lado alemão davam toda a sensação de dispor de informações que prejudicavam os ataques-surpresa, o que os levou a uma séria investigação, da qual resultou a descoberta do cão-correio, cão-estafeta, enfim um novo meio de comunicação à distância que, na época, era muito escassa e de modesta qualidade: telefones de campanha, telégrafo, código Morse, pombo-correio aberto ao tiro certeiro, e não sei se mais algum.
Ora bem, descoberto o segredo de comunicação através dos cães, os investigadores dos aliados logo começaram a estudar todo esse campo. Concluíram então que os alemães já estudavam o assunto desde há muitos anos, possuindo na altura cães de raça apurada para os efeitos desejados, quartéis de cães de guerra adestrados no ofício de mensageiro ao domicílio, etc., etc.
Sem perda de tempo, do lado aliado começa o improviso de caçar cães onde os houvesse, desde o vira-latas até ao pastor alemão, caçando homens para treinadores, sabendo tanto como os cães, etc., etc. Mas - enfatiza o nosso instrutor - «a verdade é que com todos estes improvisos os nossos cães lá se desenrascaram e cumpriram tão bem como os do inimigo que vinham de academias caninas». Chegado a este momento e a esta declaração, ouve-se do fundo da sala de aula uma voz pensadora de quem medita mais para lá das palavras. O que se ouve é isto, em atmosfera de silêncio, referindo-se à conclusão do instrutor: «Eram os milicianos meu tenente, eram os milicianos. Cá estamos nós também aqui como rafeiros». Salta uma grande gargalhada. O instrutor embatuca e faz um sorriso sardónico.
E até ao fim da instrução, a respeito de tudo e de nada, ouvia-se: «Eram os milicianos... somos os cães-correio da I Grande Guerra».

[continua]

sábado, 18 de outubro de 2008

INCURSÃO PELAS ARMAS - ECOS DA MEMÓRIA (V)

1. COMEÇANDO PELO PRINCÍPIO - Corria o ano de 1937. Fazia já um ano que começara a Guerra Civil de Espanha. Estava eu no 4º Ano do Curso de Medicina Veterinária. Teria neste ano de me apresentar à inspecção médica (vulgo «sortes») e, sendo apurado, seguir-se-ia o primeiro período de instrução militar, ingressando no Curso de Oficiais Milicianos, pois é aí o viveiro do Exército e da Marinha para civis licenciados onde se caldeiam as mais altas virtudes do cidadão deslapidado ou mal entalhado para arrostar os perigos que sempre enfrentam as grandes nações e pátrias de altos exemplos de honra e patriotismo. Esses saberes e entregas que aí se aprendem e, sofregamente, aspiram ficar à altura dos mestres e momentos onde a glória os aguarda. Isto é o que a etiqueta do curso suscita. Cá estamos. A pergunta é: estaremos à altura?
Após este intróito, que se impunha para que todos lembrem que nem tudo é mau, nem tudo é fado, cá estamos, repito, arrostando o veredictum dos Juízes, as sentinelas da herança pátria, egrégios exemplos...
Nada, porém, resiste à ferrugem que tudo mina, mesmo o que se julgaria protegido da perversão dos costumes, a corrupção da sociedade. A verdade é outra, embora não se escreva. Com efeito, ao contrário, tradicionalmente e na generalidade dos casos, todos os varões desejariam reprovar na inspecção médica e, como tal, ser dispensados dos deveres militares. Comigo, porém, passava-se o contrário. Também os desígnios eram outros e mais modestos, menos ambiciosos, mais pessoais. Pode condenar-se, mas aplaudir seria desaforo. Assim, é simplesmente justo. Nunca me julguei com estatura para tão altos desígnios. Em boa verdade desejaria ser aprovado - do que não tinha a menor dúvida, dada a minha compleição física - por duas razões: 1º. - terminado o curso e apto para o serviço militar, poderia concorrer ao quadro de veterinário militar se por acaso houvesse algum concurso de admissão; 2º. - e o mais aliciante, que consistiria em aprender equitação, o que só poderia concretizar sem custos fazendo o curso de oficial miliciano na arma de cavalaria. Nesse tempo, com menos de metade do século XX percorrido (escrito assim é mais ponderável) o Exército tinha os melhores cavaleiros do país. Porém, nesse ano as coisas iriam correr de forma diferente, dir-se-ia, ao invés da rotina, sacrificando a impoluta dignidade profissional em dose dupla (militar e civil). O patriotismo e a ética, quer militar quer médica, cedem às instruções indignas vindas do Alto, em formato de boato, o mesmo é dizer de Salazar, para que os mancebos de Lisboa, e particularmente de Alcântara, na base de uma inaptidão diagnosticada para a prática militar, conferida pela respectiva Junta Médica, e assim precaver qualquer infiltração de vírus subversivos carreados para dentro dos quartéis pelos indivíduos vindos de um meio duvidoso face à segurança da sociedade. A razão era simples. A Espanha era assediada desde há um ano pela Guerra Civil. Franco corria pela implantação do fascismo em Espanha, uma espécie de Cid, O Campeador, que também por aí cavalgou há bem mil anos, derramando sangue e morte selvaticamente como se fossem ambos da mesma cepa, o mesmo ADN, com o fito de expulsar o poder republicano democraticamente alcançado nas urnas, derrotando a ditadura de Primo de Rivera (1931-1935), exilando-se o rei Afonso XIII que se acolhe ao sol do Estoril. Portugal, para os fascistas e reis, era um paraíso. Outros, mais tarde, fizeram o mesmo.

A Mentira, «A Bem da Nação» - É bom recordar que, nesse tempo, a classe operária, concreta e personalizada, afirmava-se quase exclusivamente em Lisboa, nomeadamente em Alcântara, onde se erguia o complexo industrial da CUF, único exemplo significativo de Revolução Industrial inspirada pelos novos ventos que começaram a soprar após o fim da I Grande Guerra (1914-1918) na Europa. Perante este espectro, tudo podia acontecer; isto é, ser reprovado na inspecção médica. A preocupação aumentava à medida que se ia conhecendo a invulgar alta percentagem de mancebos dispensados. Chegado o meu dia, vi-me às tantas numa sala perfilado numa linha de quinze matulões, todos em cuecas, aguardando a sua vez para ser inspeccionado por uma Junta de três ou quatro médicos militares. Pelo aspecto físico, se fosse em tempos normais, todos seguramente seriam apurados. Porém, até à minha vez, teriam sido observados uns dez, cuja maioria ficou dispensada. Eu falava só. Olhava os médicos, simples capatazes do regime, o quadro de uma pátria ajoelhada aos pés do ditador a preço sem preço. Servidão.
Desta feita, e desde logo identificado com os «bons exemplos» e os brios aí praticados «A Bem da Nação» ou, quiçá, da humanidade, deixando para trás feito entulho o que fez a história dos tais heróis cuja memória se enxovalha em favor de outros alvos e outra moral. É preciso chamar a atenção para o pormenor de que esta inspecção tinha lugar no Quartel-General, ao tempo funcionando no Palácio das Necessidades, recebendo a brisa alcantarense transportando o vírus inquietante. Ouvindo, finalmente, o meu nome, avancei até junto da mesa onde esperavam os actores da peça que, um a um, iam manobrando à minha volta, exibindo os clássicos gestos e aparelhagem de diagnóstico usuais nestes actos profissionais e, não demorando o veredictum, dá o resultado/ordem: «Está dispensado, pode seguir». Mostrei-me surpreendido porque me sentia são como um pêro e disse, quase ofendido: «Veja o sr. doutor, eu pensava que tinha saúde para dar e vender e agora oiço esta. Preciso saber o que se passa para consultar um médico imediatamente». O médico fica um pouco surpreendido e confuso e o que lhe veio à cabeça foi dizer: «Não é nada de grave, mas fica livre. É melhor prevenir que remediar». «Não é bem assim sr. doutor, de qualquer modo quero saber o que me afecta, para me tratar e cuidar». Resposta: «Mas não está contente por ficar livre?». «Não é o caso nem se põe essa questão de querer ou não querer». O médico mostra algum embaraço em manter o diálogo e acaba por dizer: «Está bem, se quer ficará apurado. E em que arma gostaria de servir?» «Não sabia que se podia escolher, mas se me dá essa oportunidade, gostaria de ir para cavalaria». Desta feita e desde logo identificado com o brio militar e profissional dos respeitáveis facultativos, que poderão defender a Pátria de perigos medonhos mas, quanto a honra e brio profissional, estamos conversados... É uma vergonha. A nobreza de Salazar era ter a Pátria a seus pés.

[Continua...]

terça-feira, 14 de outubro de 2008

INCURSÃO PELAS ARMAS

Brevemente aqui se escutarão mais alguns «Ecos da Memória», desta feita sobre a «Incursão pelas Armas» de Fernando Vieira de Sá, com peripécias das «sortes» no quartel-general, ao tempo a funcionar no Palácio das Necessidades, ali bem perto da Alcântara da CUF e dos mancebos portadores de perigosos vírus subversivos, entre outras saborosíssimas histórias que vão do Regimento de Cavalaria 2-Lanceiros da Rainha até ao Cartaxo... onde se fala de equitação, cães de guerra, mulas, carne podre, etc... sempre à espera do invasor alemão!!!

Aqui ficam dois registos fotográficos, um de 30-X-1943, por ocasião das manobras militares na região do Cartaxo, sendo FVS Alferes-Veterinário, outro, datado de 1-VI-1953, sendo FVS já, então, graduado Tenente-Miliciano do Serviço Veterinário Militar.



domingo, 12 de outubro de 2008

A CRISE - CADA COISA TRAZ EM SI A SUA CONTRADIÇÃO

No preciso momento em que todos os debates e análises se ocupam da tão propalada crise e se tenta descobrir a pólvora seca debaixo de água, camuflando os verdadeiros responsáveis de mansos cordeiros e de "vítimas", recordámos, esta tarde, em conversa com Vieira de Sá que, já em 2004, no seu livro Viagem ao Correr da Pena, o autor se debruçava sobre os problemas inerentes ao capitalismo selvagem, ao neoliberalismo e à globalização.
Deixamos aqui alguns excertos, que mais parecem escritos sobre a realidade que estamos a viver em pleno ano de 2008.
*
«Viver a utopia era, mesmo assim, possível. Havia boas razões para isso, com a esperança de que, com o fim da Guerra Mundial, a democracia seria, por direito próprio, proclamada para valer. Porém, o grande revés de tudo isso que era pensado foi, desde logo, a sobrevivência de Salazar e Franco após a derrota do nazi-fascismo. E, a partir daí, toda a reconstituição paulatina - apenas com a mudança da sede do Reich para a América do Norte - dos ambicionados poderes hegemónicos de domínio absoluto do Mundo, agora com armas mais poderosas, nãp só militares como económicas, e o totalitarismo da globalização. No entanto a utopia existe, configurada na implosão do capitalismo selvagem, ele próprio, quando chegado ao cume da sua última etapa de crescimento. Então renascerá das cinzas um novo mundo. Será para daqui a vinte, trinta anos? Os momentos históricos não se contam por minutos, horas, ou dias, contam-se por decénios e séculos. Isto se o planeta aguentar a destruição a que está sendo sujeito em favor apenas do banditismo do capitalismo selvagem, tomando, pelo dinheiro e pelas armas de destruição maciça, a riqueza de todos, o que já esteve mais longe, bem mais longe desse fim já em curso, sem esquecer o caos ecológico.
[...]
Assistimos agora ao mais inédito acontecimento da história do mundo. A aproximação suicida do pico de abrangimento e concentração da riqueza do planeta por mor do imperialismo expresso no neoliberalismo global, incluindo as riquezas de Marte, se lá as houver, vislumbrando-se que o século XXI venha a assumir-se a arena presumível da sua defecção, quando for chegado o último degrau da própria contradição, como dialecticamente é mister, e cujos sinais objectivos de sustentação se vão sentindo cada vez mais ameaçados, apontando para a inevitável derrocada, tão global quanto o ecumenismo das forças opostas se avolumam, não sendo fácil apor soluções intermédias, pois não se trata de reformar um sistema, mas de substituí-lo, invertendo os propósitos científicos de índole sociológica e de desenvolvimento económico, o que apraz alcançar com urgência e determinação. A experiência fala por si. É imperioso ir ao encontro desse desideratum, travando o passo quanto antes ao devorismo grassante, despertando as consciências frente a riscos de outra gravidade e de bem mais sérias consequências e incerta resolução, pois estas são já do foro das patologias ainda mal conhecidas que ensombram os cientistas e o mundo.
[...]
Derrubou-se o muro de Berlim, o "muro da vergonha" como se lhe chamou. Derrube-se agora o muro da fome, o muro da demência, o muro da morte, o muro do holocausto de uma civilização que agoniza. Todos são o mesmo muro. Mas estes agora não são da vergonha, mas do crime calculado e premeditado.
O problema agudiza-se e cada vez mais vertiginosamente (tempo da história). E também mais vertiginosamente se aproxima do pleno e dialéctico princípio de que "cada coisa traz em si a sua contradição" (Marx). Assim, o globalismo neoliberal não poderá evoluir para lá dos seus próprios limites que se consubstanciam na autofagia. E quando já fervilha a contestação das inquietantes turbas de esfomeados, de desempregados, de sem-abrigo, de sem-direitos em todos os recantos da Terra, todos sistematicamente orientados para um sistema filosófico de expoente inverso, ou seja, valorizando e dignificando o trabalho e garantindo os direitos estruturantes fundamentais, em última análise, o direito inerente à dignidade humana, dando aqui relevo à sanidade mental, a mais dramática de todas as sanidades.»
Fernando Vieira de Sá, «Prefácio de Coisa Nenhuma», Viagem Ao Correr da Pena, cit., pp. 17-18, 20.