sábado, 25 de outubro de 2008

INCURSÃO PELAS ARMAS - ECOS DA MEMÓRIA (VI)

[continuação]
Agora era só esperar pelo ano seguinte para me apresentar no Regimento de Cavalaria 2 - Lanceiros da Rainha, pois em tempos da Monarquia a rainha era sempre a patrona do Regimento, onde passei uma das melhores férias da minha vida, aprendendo equitação, montando os melhores cavalos e assistido pelos melhores cavaleiros da época, concursistas em torneios internacionais. Recordo com saudade as cavalgadas pelas colinas de Monsanto, pisando o mesmo solo que o rei D. Dinis percorria nas caçadas aos ursos (ainda não existia o parque), os dias no campo de obstáculos, o volteio no picadeiro, etc. Por casualidade, já licenciado, passei dois ou três meses na Estação Zootécnica Nacional, Fonte Boa, Vale de Santarém, onde continuei a montar, nessa ocasião percorrendo a lezíria, campo aberto, de uma beleza sem par, onde a vida cresce de energia e o espírito se desfaz em poesia e optimismo. Valeu a pena.
Valeu-me este passado, quando alguns anos mais tarde, em Cuba, Ramón Castro planeou uma excursão à Sierra Maestra para me mostrar lugares onde passaram as colunas revolucionárias, mas Fidel proibiu com receio de algum desastre pelo facto de eu ir a cavalo. Foi preciso eu explicar muito bem que montar a cavalo não me causava qualquer dificuldade e que, se fosse preciso, escreveria uma carta responsabilizando-me de qualquer percalço, ao que Fidel acedeu sem mais dúvidas. Venci alvos nunca premeditados.
Para concluir, este período de instrução, e fazendo uma reflexão sobre a sua utilidade, já o fazendo com a experiência que iria adquirir e que na altura estava longe de ser realidade, dir-se-ia que, honestamente, não me lembro por mais que escave a memória de qualquer coisa útil em qualquer participação, como veio a acontecer. Tirando a equitação, e por eu estar interessado no assunto, nada, nada mesmo, assimilei que me viesse a ser útil em qualquer futuro. Pareceu-me tudo um manancial de regras oficiantes a que não se ajusta uma prática onde o imprevisto é lei.
2. OS CURSOS - O curso de oficial miliciano processava-se em dois dos períodos de férias do último ano do curso. Neste caso, o meu primeiro período, como já disse, processou-se no Regimento de Cavalaria 2 - Lanceiros da Rainha. Para mim correspondeu à prática da equitação, um tempo que para mim foi de grande prazer e proveito. Não o esqueço e teve em mim um bom incentivo de teor desportivo evoluindo para outras práticas físicas. Quanto ao resto, muito honestamente, mal me lembro de qualquer lição que tivesse alguma coisa de interesse, isto do ponto de vista militar, pois as palestras, no seu conteúdo, não eram mais do que uma continuação do ensino universitário, não se acrescentando nada de especificamente militar. O segundo período passava-se no Hospital Veterinário Militar, cuja ubicação se situava a poucos metros do Regimento de Cavalaria 7, ou seja na Boa-Hora. Isto deu como resultado que, logo que me despachava dos deveres no hospital, corria para o Regimento e aí ficava várias horas até me mandarem embora. Daí ter tido a sorte de mais dois meses de prática equestre.
No Hospital repete-se a mesma continuação universitária. De alguma coisa especificamente militar, na realidade não me recordo. Toda esta orientação, que nada tinha de militar, mais tarde mostrou a sua inutilidade quando me vi em manobras e não sabia por que ponta lhe havia de pegar, dificuldades a que me referirei à frente.

Os Cães de Guerra - De todas as lições recebidas neste período de instrução já declarei atrás que tudo o que se palestrou foi de tal vulgaridade que pouco ou nada, por mais esforços que faça, ficou retido na memória. Em linguagem dos tempos de hoje chamar-se-ia a este estado de espírito o «buraco do ozono» do planeta, sendo que aqui o planeta é o nosso mundo craniano. No entanto, uma excepção é de toda a justiça relevar. Foi a palestra sobre cães de guerra, não só pelo seu intrínseco interesse (uma informação que não era conhecida) como por uma certa filosofia que da lição se desprende, como na sua avaliação em termos mais abrangentes. Por tais razões achei oportuno relatar.
A lição, como já referi, era sobre cães de guerra. O instrutor desperta logo a atenção. Assim: Corria a I Guerra Mundial, conhecida por «Guerra das Trincheiras», em que os dois países beligerantes - França e Alemanha -, frente a frente e corpo a corpo, se debatiam, saindo das suas trincheiras, pelejando em terreno de ninguém. Durou isto quatro anos de beligerância a que se Juntaram a Bélgica, a França e depois a Inglaterra, Portugal e, do outro lado, os países de Leste. No estudo estratégico da beligerância, os observadores militares e estrategos, começaram a ter dificuldades em descobrir como os exércitos do lado alemão davam toda a sensação de dispor de informações que prejudicavam os ataques-surpresa, o que os levou a uma séria investigação, da qual resultou a descoberta do cão-correio, cão-estafeta, enfim um novo meio de comunicação à distância que, na época, era muito escassa e de modesta qualidade: telefones de campanha, telégrafo, código Morse, pombo-correio aberto ao tiro certeiro, e não sei se mais algum.
Ora bem, descoberto o segredo de comunicação através dos cães, os investigadores dos aliados logo começaram a estudar todo esse campo. Concluíram então que os alemães já estudavam o assunto desde há muitos anos, possuindo na altura cães de raça apurada para os efeitos desejados, quartéis de cães de guerra adestrados no ofício de mensageiro ao domicílio, etc., etc.
Sem perda de tempo, do lado aliado começa o improviso de caçar cães onde os houvesse, desde o vira-latas até ao pastor alemão, caçando homens para treinadores, sabendo tanto como os cães, etc., etc. Mas - enfatiza o nosso instrutor - «a verdade é que com todos estes improvisos os nossos cães lá se desenrascaram e cumpriram tão bem como os do inimigo que vinham de academias caninas». Chegado a este momento e a esta declaração, ouve-se do fundo da sala de aula uma voz pensadora de quem medita mais para lá das palavras. O que se ouve é isto, em atmosfera de silêncio, referindo-se à conclusão do instrutor: «Eram os milicianos meu tenente, eram os milicianos. Cá estamos nós também aqui como rafeiros». Salta uma grande gargalhada. O instrutor embatuca e faz um sorriso sardónico.
E até ao fim da instrução, a respeito de tudo e de nada, ouvia-se: «Eram os milicianos... somos os cães-correio da I Grande Guerra».

[continua]

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