domingo, 30 de novembro de 2008

O DRAMA DAS PME - POR DETRÁS DO PANO DE FERRO

Sob o título geral de «O DRAMA DAS PME», recebemos para publicação no blogue dois textos de Fernando Vieira de Sá. Deixamos aqui hoje o segundo, «POR DETRÁS DO PANO DE FERRO», com referências ao livro O Reino da Estupidez Nos Caminhos da Fome - Memória de tempos difíceis, editado em 1996 pelas Edições Cosmos.
Os economistas de vanguarda e de turno, ensopados em estatísticas e regras de três, assepticamente livres dos esporos de humanismo e da fome, reduzindo tudo a números, a unidades e percentagens, obcecados pelas leis da concorrência, naturalmente não tiram os olhos dos cálculos a que a frieza dos algarismos conduz, fazendo desses resultados pilares orientadores principais, necessários e suficientes no âmbito de uma contabilidade confiante e conselheirática, dentro de cujos parâmetros se pode manobrar, tendo como área de acção táctica e estratégica - para fins de rendimento e produtividade - a seara viva chamada Bolsa de Valores, onde se cultiva a imaginação, o segredo, a disponibilidade e, se possível, a espionagem para lograr os melhores resultados que exige olho vivo, destreza e isenção de preconceitos. Isto, quando se joga o risco. A verdade é que os financeiros e carrascos do dinheiro, estimulados pelos ventos de monção que sopram para dentro, e no desprezo por qualquer coisa que lhe pareça retrógrado, ultrapassado e improdutivo de qualquer avanço civilizador acompanhando a maré, dando como consequência a destruição sistemática de todo o tecido PME, desastre, não só para Portugal, como para toda a Europa, sendo responsável do desemprego crescente, devido à falência da pequena courela, donde saía a maior percentagem de géneros alimentícios, obrigando à importação de tudo quanto há vindo de todos os continentes. Por certa distorção mental e de vivência, ao referir-me a PME, tenho sempre a tendência a tomar como padrão as PME alimentares, pelo que, peço aos críticos, tenham esta nota em consideração, embora com todas as PME aconteça o mesmo, dentro dos seus âmbitos.
Portugal, hoje, é um país de serviços, um país dependente do estrangeiro, dos artigos mais básicos da alimentação com uma factura de pagamento ao exterior gravíssima.
Segundo o calendário político do país, que a TV se encarrega de informar das suas virtualidades, as PME surgem sempre como bandeira, o que não se ajusta às frequentes notícias saídas na imprensa nacional, com censuras aos governos pela sua falta de sensibilidade nessa questão de tão alta actualidade. Como exemplo, transcreve-se o seguinte texto, de Eva Cabral, retirado da secção de Economia do Diário de Notícias de 28-III-2007:
«Conselho Económico critica "falta de atenção" às PME - O Conselho Económico e Social (CES) critica a "falta de atenção dada às pequenas e médias empresas (PME)" pelo Quadro de Referência Estratégico Nacional (QREN), o envelope financeiro das verbas que Portugal vai receber de Bruxelas entre 2007 e 2013.
Adriano Pimpão, relator deste parecer do CES, fez questão de frisar ontem, aos deputados da Comissão Parlamentar de Economia, que "se trata seguramente de um lapso" a falta de referências às PME por parte do QREN. Segundo o conselho, "muitos dos problemas estruturais que o país enfrenta só serão resolvidos com sucesso se houver por parte das pequenas e médias empresas uma capacidade empresarial acrescida nas áreas da gestão, da inovação de produtos e de processos pela via do investimento, da criação de empregos de qualidade e da produção de bens e serviços de maior valor acrescentado". O CES recomenda mesmo uma "rigorosa e transparente avaliação do custo-benefício dos grandes projectos" e recorda que no Programa Operacional de Valorização do Território estão incluídos os chamados grandes projectos, que representam mais de um terço do investimento previsto no QREN, quadro que globalmente está estimado em cerca de 44 mil milhões de euros. Bruto da Costa, presidente do CES, referiu, por seu lado, que Portugal tem "uma falta de enquadramento em matéria de estratégia de desenvolvimento". Citou, ainda, um estudo sobre o fenómeno da pobreza, que está a ultimar, e em que se concluiu que do universo de pobres existentes em Portugal um terço está empregado e outro terço é pensionista.»
Para não ir mais longe, basta recordar algumas linhas por mim escritas, já então mostrando certo cansaço de tantos bis. Foi isso, no meu livro O Reino da Estupidez nos Caminhos da Fome - Memória de tempos difíceis, Edições Cosmos, 1996, já lá vão doze anos, uma eternidade, mas o panorama, para não dizer igual, é péssimo, o desgaste e os problemas são cada vez mais indignantes. Neste livro muitas são as citações relacionadas com a situação, das quais, quase ao acaso, algumas aqui se reproduzem [cf. pp. 240-242]:
«É progressivamente crescente em todo o Mundo, e nomeadamente nos de tecnologia mais avançada e nos que empregam esforços mais concretos e racionais em prol do seu desenvolvimento económico e social, o funcionamento de estabelecimentos escolares de ciência e tecnologia de alimentos. Só nos Estados Unidos, e a título de mero exemplo, existem quarenta e sete Universidades onde o ensino da ciência e tecnologia de alimentos está institucionalizado, muitas dessas Universidades funcionando em estreita ligação com a indústria, para apoio técnico sistemático.
Portugal, pese à sua implantação europeia, não possui esse tipo de ensino sob uma forma curricular global. Tais matérias dispersam-se como manta de retalhos por várias escolas superiores, num verdadeiro bluff que não leva a lugar nenhum. Nem vale a pena escrever mais sobre esta miseranda realidade, à qual os respectivos professores parecem tão bem adaptados e conformados.
[...]
Há que reconhecer que toda a reconversão industrial da preparação e transformação de alimentos depende de que os seus quadros técnicos estejam à altura das responsabilidades. Não pode mais continuar-se a utilizar o improviso, autodidactismo, o amadorismo, em questões tão complexas.
[...]
2. Milhares de pequenas e médias empresas.
Outro ponto importante: a extrema pulverização da indústria, além da sua própria diversidade. Existem milhares de pequenas e médias empresas dispersas por todo o País, representando a ocupação e sustentáculo de muitos mais milhares de trabalhadores e respectivas famílias.
[...]
Estas empresas, individualmente, têm um significado económico pequeno, dir-se-á, mesmo, insignificante. Porém, em conjunto, elas assumem uma importância das mais significativas na economia portuguesa.
Sob o ponto de vista técnico, como é de prever, é extremamente precário, a todos os títulos, o seu parque industrial, ao que se alia uma técnica deficiente e empírica, que acarreta as consequências mais graves, quer em rentabilidade, quer em qualidade. Contudo, não se deve menosprezar certos produtos da indústria caseira (que, aliás, devem ser considerados num esquema diferente do da pequena e média empresa e que tem muito de positivo para a valorização regional e turística), pois essa participação constitui um verdadeiro alfobre de interesse para a economia doméstica, e, nomeadamente, agrícola.
3. Um apoio indispensável.
[..]
No entanto, é de esperar que o Estado venha a tomar uma participação directa em muitas dessas empresas, quer por ter forçosamente de as gerir por abandono ou desinteresse dos proprietários ou por ameaça de falência, a fim de garantir o emprego e a produção necessária ao consumo, quer intervindo directamente nos aspectos tecnológicos, dos quais depende a promoção da qualidade e a obtenção de melhores rendimentos. Em qualquer dos casos, o INII pode e deve desempenhar um papel de primordial relevo nesses processos, pois tem quadros com experiência que permitem a montagem imediata desses serviços com a dimensão que se tornar indispensável. Basta, para tanto, que lhe sejam facultados os meios humanos e materiais que permitam a esses quadros uma autêntica intervenção. Isto não significa de nenhum modo uma atitude de proteccionismo ou de paternalismo, que, além de tudo, são sentimentos incompatíveis com ambições de conquista de mercados externos, e com as investidas que possam surgir do exterior por forçadas penetrações das nossas fronteiras aduaneiras, derivadas de acordos internacionais a que Portugal se veja ligado.
Pode dizer-se que, no momento actual [anos noventa do século passado], o DTIA tem iniciadas intervenções do tipo das acima mencionadas, mas é evidente que essa participação terá de ser amplamente aumentada e completada com adequado apoio do sector económico em matéria de gestão» [No presente todo este apoio foi selvaticamente desmantelado. Hoje não há apoio técnico e científico às PME].
Fernando Vieira de Sá
23 de Novembro de 2008

domingo, 23 de novembro de 2008

O DRAMA DAS PME - CONCORRÊNCIA, VALOR ABSOLUTO

Sob o título geral de «O DRAMA DAS PME», recebemos para publicação no blogue dois textos de Fernando Vieira de Sá. Deixamos aqui hoje o primeiro, sobre «CONCORRÊNCIA, VALOR ABSOLUTO», uma reflexão muito actual sobre a CRISE e os «truques» que a provocaram e que estão já na origem de novos «aperfeiçoamentos da marosca».
As Pequenas e Médias Empresas (PME) são com frequência citadas nos paleios e bate-papos dos arautos da política à roda de uma mesa em qualquer canal TV, sem nunca mostrar ciência sobre fenómenos de definição objectiva e de contornos precisos gerados neste sector. É, por assim dizer, um clima que neste caso se expressa em estado de graça sem querer denunciar a verdadeira razão do mau-estar e consequências desastrosas que se vêem a olho nu. Contudo, a complexidade da questão é cada vez maior, na medida em que a doutrina da concorrência, exigindo redução de custos de produção e, por acrescento, comercialização, adoptando a teoria da concentração e monopólio, seguindo em frente com resultados progressivamente positivos, só exigindo mais para ganhar mais de um ponto de vista financeiro. Nada mais. E tudo isto funciona às mil maravilhas, já que os resultados financeiros assentam em esferas, o que deleita os investidores de 1ª grandeza, já que os de 2ª e de 3ª, etc., esses, também acabam por ser engolidos, ficando a aguardar alguma regurgitação do predador.
Eis o retrato da engrenagem e a conclusão inequívoca. Neste capítulo, a inovação é de magia, pois a imaginação para lograr melhores resultados não tem limites. É como nos crimes comuns, porque nos casos em questão a moral é de funil e os seus cérebros são consagrados especialistas em ciência financeira que, com subtileza contabilística, vão sempre à frente dos esquemas de controlo clássicos. É evidente que não são todos, mas que são muitos, são. E os operacionais também não se chamam burlões, mas outra coisa inócua, como gestores, consultores, peritos, cujo sucesso no negócio depende do segredo e não há confessionário que se diga seguro. Daí a bomba. Ninguém sabe nada, enquanto não rebenta.
O sucesso inspira a imaginação e até induz a outras fontes produtivas, truques onde se pode arrecadar mais receitas. É o caso das contabilidades paralelas fugindo aos impostos, off-shore e muitos outros truques.
Muito se poderia acrescentar sobre a dinâmica capitalista que, no auge do seu desenvolvimento, vem cair na concentração global criando a CRISE, que presentemente está em pleno desabrochar, aliás, prevista por Marx há mais de um século, prognosticando cientificamente que só no fundo da crise o socialismo teria viabilidade de implantação. É implícito que, em favor desta concentração de riqueza que absorve as economias menores, as PME estiveram sempre na linha da conversão dos parâmetros do peso da propriedade, começando pela propriedade rústica na linha da sua extinção, tida por absurda, face às novas técnicas de produção e outros factores.
Vem a propósito recordar um episódio que teve o condão da sua justeza de raciocínio nato, instintivamente puxando-lhe o pé para a verdade (aqui não foi o pé, mas o raciocínio), e vai daí cair em Marx. estava dito sem o querer... Abrenúncio!!! Passou-se isto num desses bate-papos na TV onde se juntavam três ou quatro mestres da orquestra política acarinhada, diga-se: o Zé, o Manel e o Toino, por exemplo, perorando a propósito da CRISE. Descrevia um deles a evolução da crise que (ainda) se vive. E de tal maneira o companheiro se expressava com toda a gentileza e convicção que eu, com espanto, colei-lhe imediatamente a tese que defendia com a de Marx escrita há mais de um século. Tintim por tintim, o que me espantou o arrojo, mas não estava enganado, pois um dos companheiros presente, digerindo palavra por palavra ouvida, teve exactamente o mesmo pensamento e diz: «Cai-se assim no socialismo, não é verdade?» Marx também concluiu o mesmo, como se sabe, o que quer dizer que o socialismo só se alcançará por exaustão evolutiva do capitalismo e não por rebelião das massas a quem falta os meios, por isso só em crise profunda e colapso poderão ter êxito. À interrogação, responde prontamente o mestre, sorrindo, como quem diz a palavra-chave: «Nem pensar, seria o caos, todos a falar ao mesmo tempo sem ninguém se entender, isto num processo que exige segredo, exigência, estudo, estruturas. O que há a fazer terão de ser os mesmos, já experientes, retirando da experiência as falhas cometidas, e edificar o sistema (capitalista) com as devidas seguranças reforçadas». No meu comentário íntimo, na altura, achei este pensamento profundamente ingénuo vindo donde vinha, mas monolítico, ou seja, sem outra saída credível possível, esquecendo-se que, na presente crise, não faltavam medidas já existentes de fiscalização e acompanhamento do conhecimento de todos, de cunho oficial e privado, obedecendo a regras pretorianas dirigidas ao cumprimento rigoroso de toda a operacionalidade de ambos os sistemas privado e governamental, mas a que todos os intervenientes altos responsáveis se abstiveram, de comum acordo, de recorrer e usar para todos os efeitos do controlo, o que foi determinante na presente crise, como tem sido largamente denunciado.
Deve dizer-se, portanto, que o sistema em causa poderia ser bom e precavia-se de todos os desvios da correcta acção, os quais foram abusadamente ignorados e sigilados segundo a regra de oiro do sistema.
E são estes mesmos senhores, segundo aquele amigo que, quando o outro concluía ter-se chegado ao socialismo por falência do capitalismo, respondia: «Nunca, agora com a experiência recolhida estamos em condições de todos os aperfeiçoamentos.» Quais? - pergunto eu agora? Mais sigilo? Aí está a ciência do truque pendente de uma importante investigação. Tudo para se chegar ao capitalismo absoluto, irreversível, uma espécie de divindade... já faltou mais!
Por agora, «tudo como dantes, quartel-general em Abrantes».
O sigilo que se exige é o aperfeiçoamento da marosca e um seguro de risco, talvez pago pelo Governo.
Fernando Vieira de Sá
23 de Novembro de 2008

domingo, 16 de novembro de 2008

A TODOS OS SERVIDORES DA FUNÇÃO PÚBLICA, FRATERNALMENTE

A fim de oferecer aos interessados um melhor conhecimento do conteúdo do livro Autópsia a Um Departamento Científico do Estado - Livro Branco do Departamento de Tecnologia das Indústrias Alimentares, publicamos hoje o seu índice, antecedido da dedicatória que F. Vieira de Sá fez a «todos os servidores da Função Pública»:

Dedico este trabalho de selecção documental e de crítica de processos a todos os servidores da Função Pública, independentemente de categorias, vínculo ao Estado ou precariedade de funções. Fraternalmente Fernando Vieira de Sá
ÍNDICE
Apresentação
A questão / O denominador comum / História da Pré‑História / Grande Cruzada /A Sucessão
LIVRO BRANCO
Manifesto – Verão de 1975 [A revolução]
Publicações Periódicas (Difusão Restrita) Editadas pelo DTIA/LNETI
Nota Prévia – do que se escreve e descreve no Livro Branco
ANAIS
ANAIS 1979
Índice I — Introdução XIII — FILAGRO XIV — Visitas ao Departamento XVII — Perspectivas Futuras
ANAIS 1980 I — Introdução VIII — Participação em Congressos, Simpósios, Etc. XVI — Visitas ao Departamento XVII — Perspectivas Futuras
ANAIS 1981 I — Introdução XIII — Órgãos Consultivos e de Informação XVI — Visitas ao Departamento XVII — Perspectivas Futuras ÍNDICE
ANAIS 1982 I — Introdução VI — Formação e Actualização de Quadros (Cursos e Estágios, Reuniões Científicas e Visitas de carácter formativo e informativo) VII — Cursos e Estágios para Quadros da Indústria e Outras Instituições incluindo Universidades VIII — Participações em Congressos, Simpósios, Etc. XVI — Visitas ao Departamento XVIII — Perspectivas Futuras ANAIS 1983 I — Introdução VII — Acções de Formação para Quadros da Indústria e Outras Instituições incluindo Universidades XVI — Visitas ao Departamento XVIII — Perspectivas Futuras
FOLHA INFORMATIVA MENSAL – Editoriais
Abril 1981: [O Dever de Informar]
Maio 1981: [Ameaça ao Uso da Palavra Escrita]
Junho 1981: [O Orçamento Não é uma Peça Burocrática]
Julho 1981: [O Descalabro do Comércio Externo, na Área Alimentar]
Agosto 1981: [Racionalização dos Meios de Trabalho]
Setembro 1981: [Informação e Relações Públicas]
Outubro 1981: [Desconforto na Falta de Decisão sobre Carreiras Profissionais]
Novembro 1981: [A Burocracia como Modo de Estar na Vida à Mesa do Orçamento]
Dezembro 1981: [O DTIA Sabe o que Quer]
Janeiro 1982: [A Democratização da Ciência]
Fevereiro 1982:[Funcionamento do DTIA em Discussão]
Março 1982: [Reflexões Sobre o Tipo de Investigador que ao DTIA Interessa]
Abril 1982: [A Proibição do Debate de Ideias]
Maio 1982: [Do Servir e do Servir‑se]
Junho 1982: [Planeamento para «Inglês Ver». Leia-se UE]
Julho 1982: [A Valsa das Instalações]
Agosto 1982: [Repentino Convite à Reflexão]
Setembro 1982: [DTIA Olha à Internacionalização]
Outubro 1982: [Na Senda das Opções. A Carreira de Investigação em Discussão]
Novembro 1982: [O Fim de um Projecto]
Dezembro 1982: [Auto-exclusão, Drama do Absentismo]
Maio 1983: [Noticiário]
Novembro 1983: [Noticiário]
Julho 1984 (Suplemento): [Despedida]
Julho 1984: [Passagem de testemunho e despedidas]
Simpósio Internacional «As Indústrias Agro‑Alimentares e o Desenvolvimento Rural» e 1º Congresso Nacional de Indústrias Agro‑Alimentares
Antecedentes: Causas e Objectivos
Índice
Introdução
Para uma Melhor Compreensão e Intervenção Administrativa do Estado no Sector das Indústrias Alimentares
Conclusões
Ensino e Profissionalização da Ciência e Tecnologia dos Alimentos
Conclusões
Correspondência [Destinatários]
26/XII/80 — Presidente do LNETI
10/II/82 — Director do ITI
2/III/82 — Director do ITI
9/XI/82 — Prof. Romero
17/II/83 — Presidente do LNETI
16/V/83 — Director do ITI
26/V/83 — Presidente do LNETI
26/V/83 — Director do ITI
25/XI/83 — Prof. Veiga Simão
12/VI/84 — Prof. Veiga Simão
15/VI/84 — Director do ITI
9/VII/92 — Prof. Veiga Simão
12/XI/2001 — Presidente do INETI
Conclusão
Posfácio
A Citação
Post Scriptum [ano de 2006]

sábado, 8 de novembro de 2008

INCURSÃO PELAS ARMAS - ECOS DA MEMÓRIA (VII)

E terminamos hoje a publicação do texto que pedimos a Vieira de Sá sobre algumas peripécias interessantes da sua «Incursão pelas Armas», dando assim continuação à nossa intenção de ir registando neste blogue alguns dos «ecos da memória» de alguém cuja vida atravessou quase todo o século XX - um século de grandes guerras e de selvajarias várias que não podemos esquecer - e que continua atento e participante na aventura de ir construindo um século XXI que vai avançando cheio de incertezas e nuvens negras, mas também com alguns ténues sinais de que é possível manter a esperança na inteligência humana.
[continuação]
TEMPOS DE ESPERA E DE GUERRA - Pensava eu que, terminada a instrução obrigatória da escola de milicianos, ficaria para toda a vida livre de quaisquer compromissos militares. Guardei o meu fardamento, do qual fazia parte um par de botas altas de bela qualidade que me fora emprestado, poucos anos antes, e mais tarde oferecido por uma amiga, viúva recente de um oficial elegante, lembrando-se que poderia fazer-me jeito se por coincidência me servisse. Experimentei e era exactamente o número... as botas do defunto, um inédito princípio de vida militar. É quase para dizer «Como é que vou descalçar esta bota?!».
Os tempos eram terrivelmente preocupantes, já que a Guerra Civil de Espanha terminou em Janeiro de 1939 (trinta e dois meses de Guerra Civil) - sucedendo-se sem intervalo a II Guerra Mundial (1939-1945) -, durante a qual se perpetraram verdadeiros crimes contra a Humanidade, ceifando um milhão de vidas, onde os nazis ensaiaram gratuitamente os seus aperfeiçoamentos aeronáuticos de bombardeamento sobre alvos populacionais, como no caso de Guernica (1937), uma pacata vila sem nenhuma peculiaridade de interesse estratégico, aniquilando toda a população pacífica, arrepiando toda a gente com o mínimo de sentimentos civilizados, crime este fixado para a História da Selvajaria por Picasso numa tela imortal e uma das suas obras mais célebres. Já não falando do genocídio de muitos milhares de pessoas encerradas na arena da Praça de Touros de Badajoz, fuziladas e para cujo espectáculo (assim se anunciava) houve convites para portugueses que aí acorreram em ar de festa com a bênção salazarista... cheios de fé cristã.
Pela minha parte, durante o ano de 1942, na companhia de Maria Elvira, minha mulher, encontrava-me em Inglaterra, auferindo de uma bolsa de estudo na Universidade de Reading, experimentando a guerra in loco com todos os riscos e proveitos que perseguíamos, já descritos em diversas ocasiões. Experimentámos receios de diversa índole, um deles quando da cedência da base das Lajes, nos Açores, ao abrigo da aliança anglo-portuguesa, o que poderia originar a invasão das tropas nazis, e, se tal tivesse ocorrido, nós poderíamos recolher a um campo de estrangeiros sob vigilância. Nada aconteceu, mas risco sempre houve e conseguimos, em fins de 1942, regressar sãos e salvos. Chegados a Portugal passavam as mesmas preocupações e Salazar, para evitar pânico na população, resolve mobilizar as tropas, chamando-lhe apenas «manobras militares», consistindo em criar uma 4ª Divisão, com sede no Cartaxo, tendo como finalidade defender-nos de qualquer invasão através da ponte sobre o Tejo, a única que ao tempo existia.
Chegado de Inglaterra, e ao Serviço da Direcção-Geral dos Serviços Pecuários, fui colocado em Coimbra. Já com as «manobras» em curso, e tendo sido mobilizados alguns dos meus colegas mais antigos, não percebi por que razão não fui chamado.
Aqui começa uma campanha surda, vinda dos colegas, acusando-me de ser protegido por algum truta. Era totalmente falso. Como tinha a consciência limpa, deixei-os gozar. Mas, uma manhã, estando na Intendência de Pecuária, vem o contínuo dizer que estava ali um polícia que precisava de falar comigo. Vi imediatamente que tinha chegado a minha vez, de tal modo que, quando o polícia chega com um papel, antes mesmo de dizer qualquer palavra, eu adiantei-me: «Onde está a convocatória para assinar?». A partir deste momento, e informada a família, foi fazer a mala e ir à gaveta ressuscitar a farda e as botas altas do defunto. No dia seguinte, estava a caminho do Porto para me apresentar no Regimento de Infantaria 6. A campanha contra as minhas cunhas acabou.
Novamente fardado, apresentei-me ao Comandante, por sinal muito civilizado, sendo também médico com consultório aberto. Eu olhava para todo aquele ambiente e pensava como me iria safar de tudo aquilo, não percebendo nada de orgânica funcional, de regulamentos e procedimentos que não foram ensinados na altura devida, por mais que eu esquadrinhasse a memória, concluindo que esse tempo foi pura perda de tempo, salvando-se para meu interesse a equitação que pagou as dificuldades em que agora me via metido. Não sabendo eu nada, resolvi proceder por minha conta usando a racionalidade. E quando me vinha o sargento enfermeiro dizer «Meu alferes isso não pode ser porque o regulamento...» não dizia mais porque, de imediato, eu respondia: «O regulamento agora sou eu». E tudo seguia.
Como era regra, ao fim do dia tinha despacho com o Comandante, onde o informava das minhas resoluções, sem atender a regulamentos, que não tinha e não podia estudá-los sobre a ocorrência. Como tal actuava profissionalmente num critério de bom senso, sem burocracia. Ele, não só sempre aprovou as minhas decisões, como me apoiava.
Tudo isto foi para mim uma experiência impensável, mas que acabou (mas muito mais tarde) por ser interessante.
Mas a grande surpresa estava para vir. À chegada do comboio-militar ao Cartaxo, o que só aconteceu após intermináveis horas de viagem, transportando um regimento completo, implicando umas centenas de mulas e todo o material de guerra, etc., vá de apear tudo isto para um cais à dimensão da povoação. Falta-me imaginação para traduzir por palavras escritas o pandemónio que se instala e que, mal comparado, me fazia lembrar as notícias da imprensa a propósito da retirada de Rommel [Erwin Johannes Eugen Rommel, «A Raposa do Deserto», 1891-1944] depois da derrota do Afrika Korps na batalha de El Alamein, no Egipto (1942), que estava ainda muito presente em toda a gente do mundo a quem a imprensa chegou. Eu olhava para tudo e não fazia a menor ideia de qual seria a minha actuação. Atender as mulas? Ajudá-las a sair do vagão? Fazer-lhes festinhas para as sossegar, dizendo-lhes ao ouvido que era só uma brincadeira de mau gosto? Em boa verdade, a tropa também não estaria mais preparada do que eu. Onde estavam os chefes?
A minha sorte foi ter encontrado três colegas - dois milicianos e um de carreira - que andavam à minha procura para terem comigo uma reunião urgente. O assunto era grave. O que se passava? Afastámo-nos da balbúrdia e fomos reunir à distância. Queriam eles, por camaradagem, pôr-me ao corrente de uma bizarra situação, mas muito grave para o nosso desempenho profissional e militar. Acontece que, chegando a Cabo Verde, onde havia um destacamento militar, uma remessa de alimentos onde havia carne imprópria para consumo, em início de putrefacção, o veterinário devolveu-a à procedência, dado que o regulamento proibia a sua inutilização no destino. Quando a carne chegou a Lisboa, o ministro [Santos Costa] ficou furioso, com o pretexto de que «em tempo de guerra não se limpam armas» e afirmava: «Vai para comer é para comer mesmo». Como tal castiga, com registo na caderneta disciplinar, e declara que essa carne terá de ser consumida, dê por onde der. Acontece que essa mesma carne é despachada para o Regimento de Infantaria 6, no Cartaxo. Aqui ninguém sabia do acontecido e, naturalmente, o veterinário rejeitou a carne. E, apesar de não ter dúvidas, chamou os colegas para darem parecer e ambos confirmaram a rejeição, pois a carne, que já estava em más condições de salubridade em Cabo Verde, ao fim de mais de um mês estava em estado deplorável, de tal modo que, não só foi rejeitada, como foi imediatamente enterrada para evitar males maiores, fazendo um «auto de notícia» destinado ao Ministério, na boa fé de ter actuado com critério indiscutível. A decisão do ministro, que ficou furioso por a carne ter sido enterrada, não tendo sido usada no rancho ou, então, devolvida, foi castigar os três veterinários com castigo registado na caderneta de disciplina. Dois dos veterinários eram milicianos e diziam com humor que tal castigo na vida civil era um atestado de conduta exemplar, pelo facto de a sua atitude respeitar e defender a saúde pública. Já o veterinário militar, por causa do castigo registado, viu o seu futuro prejudicado, atrasando e dificultando a sua progressão na carreira militar.
Os tempos de manobras seguiram-se sem percalços, sempre à espera do inimigo, que afinal não veio. Para mim, valeu-me uma grande experiência e ter tido a sorte de encontrar um Comandante, médico em simultâneo, com uma grande abertura ao racional critério de decisão, apreciando por isso o meu critério de responsabilidade, sempre tendo o Comandante ao corrente dos problemas, se é que de problemas se tratava. Do que se tratava era de usar a responsabilidade.
Isto valeu-me quando já no Porto e no quartel, indo, no final da missão, despedir-me do Comandante, fui vestido à paisana. Quando os camaradas me viram disseram em uníssono: «Eh pá, não podes ir à paisana, o Comandante não te recebe». Eu respondi: «Agora já não posso ir mudar de roupa, já não há tempo e já tenho tudo emalado». E insistiam: «Eh pá, não podes. Vais ver!...». Entrei e o Comandante nada disse. Conversámos um pouco, perguntando-me se, caso houvesse a circunstância de nova mobilização ou se entrássemos em guerra, me poderia requisitar, porque tinha gostado do meu trabalho sem os berbicachos de que muita gente faz gala. Já na despedida, o Comandante, dando-me um abraço, diz: «Doutor, estou a ver que estava farto desta vida»... e olhou para mim varrendo a vista pela minha indumentária. Eu entendi a repreensão e respondi: «Meu comandante, nem me fale!». E assim acabaram as manobras. Cá fora, os camaradas aguardavam-me e ficaram espantados: «Então, o tipo não te repreendeu?». «Não - respondi - e estou aqui vivo». Não faltaram os protestos e dichotes: «Pois é, vêm para aqui estes milicianos, fazem o que querem e nós é que nos tramamos. Não é justo. E ainda se riem de nós». Etc. etc. etc.
É pena, há muita coisa que não se pode explicar. A única explicação é o medo.

Fernando Vieira de Sá

Outubro/Novembro de 2008