E terminamos hoje a publicação do texto que pedimos a Vieira de Sá sobre algumas peripécias interessantes da sua «Incursão pelas Armas», dando assim continuação à nossa intenção de ir registando neste blogue alguns dos «ecos da memória» de alguém cuja vida atravessou quase todo o século XX - um século de grandes guerras e de selvajarias várias que não podemos esquecer - e que continua atento e participante na aventura de ir construindo um século XXI que vai avançando cheio de incertezas e nuvens negras, mas também com alguns ténues sinais de que é possível manter a esperança na inteligência humana.
[continuação]
TEMPOS DE ESPERA E DE GUERRA - Pensava eu que, terminada a instrução obrigatória da escola de milicianos, ficaria para toda a vida livre de quaisquer compromissos militares. Guardei o meu fardamento, do qual fazia parte um par de botas altas de bela qualidade que me fora emprestado, poucos anos antes, e mais tarde oferecido por uma amiga, viúva recente de um oficial elegante, lembrando-se que poderia fazer-me jeito se por coincidência me servisse. Experimentei e era exactamente o número... as botas do defunto, um inédito princípio de vida militar. É quase para dizer «Como é que vou descalçar esta bota?!».
Os tempos eram terrivelmente preocupantes, já que a Guerra Civil de Espanha terminou em Janeiro de 1939 (trinta e dois meses de Guerra Civil) - sucedendo-se sem intervalo a II Guerra Mundial (1939-1945) -, durante a qual se perpetraram verdadeiros crimes contra a Humanidade, ceifando um milhão de vidas, onde os nazis ensaiaram gratuitamente os seus aperfeiçoamentos aeronáuticos de bombardeamento sobre alvos populacionais, como no caso de Guernica (1937), uma pacata vila sem nenhuma peculiaridade de interesse estratégico, aniquilando toda a população pacífica, arrepiando toda a gente com o mínimo de sentimentos civilizados, crime este fixado para a História da Selvajaria por Picasso numa tela imortal e uma das suas obras mais célebres. Já não falando do genocídio de muitos milhares de pessoas encerradas na arena da Praça de Touros de Badajoz, fuziladas e para cujo espectáculo (assim se anunciava) houve convites para portugueses que aí acorreram em ar de festa com a bênção salazarista... cheios de fé cristã.
Pela minha parte, durante o ano de 1942, na companhia de Maria Elvira, minha mulher, encontrava-me em Inglaterra, auferindo de uma bolsa de estudo na Universidade de Reading, experimentando a guerra in loco com todos os riscos e proveitos que perseguíamos, já descritos em diversas ocasiões. Experimentámos receios de diversa índole, um deles quando da cedência da base das Lajes, nos Açores, ao abrigo da aliança anglo-portuguesa, o que poderia originar a invasão das tropas nazis, e, se tal tivesse ocorrido, nós poderíamos recolher a um campo de estrangeiros sob vigilância. Nada aconteceu, mas risco sempre houve e conseguimos, em fins de 1942, regressar sãos e salvos. Chegados a Portugal passavam as mesmas preocupações e Salazar, para evitar pânico na população, resolve mobilizar as tropas, chamando-lhe apenas «manobras militares», consistindo em criar uma 4ª Divisão, com sede no Cartaxo, tendo como finalidade defender-nos de qualquer invasão através da ponte sobre o Tejo, a única que ao tempo existia.
Chegado de Inglaterra, e ao Serviço da Direcção-Geral dos Serviços Pecuários, fui colocado em Coimbra. Já com as «manobras» em curso, e tendo sido mobilizados alguns dos meus colegas mais antigos, não percebi por que razão não fui chamado.
Aqui começa uma campanha surda, vinda dos colegas, acusando-me de ser protegido por algum truta. Era totalmente falso. Como tinha a consciência limpa, deixei-os gozar. Mas, uma manhã, estando na Intendência de Pecuária, vem o contínuo dizer que estava ali um polícia que precisava de falar comigo. Vi imediatamente que tinha chegado a minha vez, de tal modo que, quando o polícia chega com um papel, antes mesmo de dizer qualquer palavra, eu adiantei-me: «Onde está a convocatória para assinar?». A partir deste momento, e informada a família, foi fazer a mala e ir à gaveta ressuscitar a farda e as botas altas do defunto. No dia seguinte, estava a caminho do Porto para me apresentar no Regimento de Infantaria 6. A campanha contra as minhas cunhas acabou.
Novamente fardado, apresentei-me ao Comandante, por sinal muito civilizado, sendo também médico com consultório aberto. Eu olhava para todo aquele ambiente e pensava como me iria safar de tudo aquilo, não percebendo nada de orgânica funcional, de regulamentos e procedimentos que não foram ensinados na altura devida, por mais que eu esquadrinhasse a memória, concluindo que esse tempo foi pura perda de tempo, salvando-se para meu interesse a equitação que pagou as dificuldades em que agora me via metido. Não sabendo eu nada, resolvi proceder por minha conta usando a racionalidade. E quando me vinha o sargento enfermeiro dizer «Meu alferes isso não pode ser porque o regulamento...» não dizia mais porque, de imediato, eu respondia: «O regulamento agora sou eu». E tudo seguia.
Como era regra, ao fim do dia tinha despacho com o Comandante, onde o informava das minhas resoluções, sem atender a regulamentos, que não tinha e não podia estudá-los sobre a ocorrência. Como tal actuava profissionalmente num critério de bom senso, sem burocracia. Ele, não só sempre aprovou as minhas decisões, como me apoiava.
Tudo isto foi para mim uma experiência impensável, mas que acabou (mas muito mais tarde) por ser interessante.
Mas a grande surpresa estava para vir. À chegada do comboio-militar ao Cartaxo, o que só aconteceu após intermináveis horas de viagem, transportando um regimento completo, implicando umas centenas de mulas e todo o material de guerra, etc., vá de apear tudo isto para um cais à dimensão da povoação. Falta-me imaginação para traduzir por palavras escritas o pandemónio que se instala e que, mal comparado, me fazia lembrar as notícias da imprensa a propósito da retirada de Rommel [Erwin Johannes Eugen Rommel, «A Raposa do Deserto», 1891-1944] depois da derrota do Afrika Korps na batalha de El Alamein, no Egipto (1942), que estava ainda muito presente em toda a gente do mundo a quem a imprensa chegou. Eu olhava para tudo e não fazia a menor ideia de qual seria a minha actuação. Atender as mulas? Ajudá-las a sair do vagão? Fazer-lhes festinhas para as sossegar, dizendo-lhes ao ouvido que era só uma brincadeira de mau gosto? Em boa verdade, a tropa também não estaria mais preparada do que eu. Onde estavam os chefes?
A minha sorte foi ter encontrado três colegas - dois milicianos e um de carreira - que andavam à minha procura para terem comigo uma reunião urgente. O assunto era grave. O que se passava? Afastámo-nos da balbúrdia e fomos reunir à distância. Queriam eles, por camaradagem, pôr-me ao corrente de uma bizarra situação, mas muito grave para o nosso desempenho profissional e militar. Acontece que, chegando a Cabo Verde, onde havia um destacamento militar, uma remessa de alimentos onde havia carne imprópria para consumo, em início de putrefacção, o veterinário devolveu-a à procedência, dado que o regulamento proibia a sua inutilização no destino. Quando a carne chegou a Lisboa, o ministro [Santos Costa] ficou furioso, com o pretexto de que «em tempo de guerra não se limpam armas» e afirmava: «Vai para comer é para comer mesmo». Como tal castiga, com registo na caderneta disciplinar, e declara que essa carne terá de ser consumida, dê por onde der. Acontece que essa mesma carne é despachada para o Regimento de Infantaria 6, no Cartaxo. Aqui ninguém sabia do acontecido e, naturalmente, o veterinário rejeitou a carne. E, apesar de não ter dúvidas, chamou os colegas para darem parecer e ambos confirmaram a rejeição, pois a carne, que já estava em más condições de salubridade em Cabo Verde, ao fim de mais de um mês estava em estado deplorável, de tal modo que, não só foi rejeitada, como foi imediatamente enterrada para evitar males maiores, fazendo um «auto de notícia» destinado ao Ministério, na boa fé de ter actuado com critério indiscutível. A decisão do ministro, que ficou furioso por a carne ter sido enterrada, não tendo sido usada no rancho ou, então, devolvida, foi castigar os três veterinários com castigo registado na caderneta de disciplina. Dois dos veterinários eram milicianos e diziam com humor que tal castigo na vida civil era um atestado de conduta exemplar, pelo facto de a sua atitude respeitar e defender a saúde pública. Já o veterinário militar, por causa do castigo registado, viu o seu futuro prejudicado, atrasando e dificultando a sua progressão na carreira militar.
Os tempos de manobras seguiram-se sem percalços, sempre à espera do inimigo, que afinal não veio. Para mim, valeu-me uma grande experiência e ter tido a sorte de encontrar um Comandante, médico em simultâneo, com uma grande abertura ao racional critério de decisão, apreciando por isso o meu critério de responsabilidade, sempre tendo o Comandante ao corrente dos problemas, se é que de problemas se tratava. Do que se tratava era de usar a responsabilidade.
Isto valeu-me quando já no Porto e no quartel, indo, no final da missão, despedir-me do Comandante, fui vestido à paisana. Quando os camaradas me viram disseram em uníssono: «Eh pá, não podes ir à paisana, o Comandante não te recebe». Eu respondi: «Agora já não posso ir mudar de roupa, já não há tempo e já tenho tudo emalado». E insistiam: «Eh pá, não podes. Vais ver!...». Entrei e o Comandante nada disse. Conversámos um pouco, perguntando-me se, caso houvesse a circunstância de nova mobilização ou se entrássemos em guerra, me poderia requisitar, porque tinha gostado do meu trabalho sem os berbicachos de que muita gente faz gala. Já na despedida, o Comandante, dando-me um abraço, diz: «Doutor, estou a ver que estava farto desta vida»... e olhou para mim varrendo a vista pela minha indumentária. Eu entendi a repreensão e respondi: «Meu comandante, nem me fale!». E assim acabaram as manobras. Cá fora, os camaradas aguardavam-me e ficaram espantados: «Então, o tipo não te repreendeu?». «Não - respondi - e estou aqui vivo». Não faltaram os protestos e dichotes: «Pois é, vêm para aqui estes milicianos, fazem o que querem e nós é que nos tramamos. Não é justo. E ainda se riem de nós». Etc. etc. etc.
É pena, há muita coisa que não se pode explicar. A única explicação é o medo.
Fernando Vieira de Sá
Outubro/Novembro de 2008
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