sábado, 23 de maio de 2009

PARA A HISTÓRIA DA SOCIEDADE PORTUGUESA DE CIÊNCIAS VETERINÁRIAS

Como complemento ao texto anterior, e por considerarmos ser um importante documento para a história da Sociedade Portuguesa de Ciências Veterinárias, publicamos hoje parte de uma longa carta (23 pp.) de Fernando Vieira de Sá dirigida, em 1997, aos seus colegas da SPCV.
Prezados Colegas da SPCV
Lisboa, 03 de Dezembro de 1997
Acuso a recepção da v. prezada carta-circular de 9 de Setembro que muito agradeço e à qual excepcionalmente vou responder.
Não é por qualquer espécie de sentimento de menosprezo pelos meus Colegas, nomeadamente os Corpos Gerentes da Sociedade, ou de indiferença pelo seu próprio destino, que desde há muitos anos me tenho vertido ao silêncio e à abstenção relativamente a toda a correspondência que me é dirigida veiculando informações e convocatórias de índole associativa o que, no íntimo, me sensibiliza sem contudo me atrever a dar azo a qualquer tipo de participação. Tal oportunidade é já para mim inviável.
Desta vez, porém, sinto que a presente carta-circular de 9 de Set. transuda grande e emotiva sensação de desânimo, seguida de apelo quase expressando uma despedida in articulo mortis, não sem antes antever a hipótese de uma milagrosa oblativa que - passo a citar - "permita melhorar o nível de adesão à SPCV", [cientes de que] "isso só será possível através de realizações que beneficiem os Colegas a ela associados".
Procura-se assim - continuo a citar - "a elaboração de um programa de actividades que melhor represente as preocupações e interesses dos Associados".
Perante tal depoimento, de cuja justeza de diagnóstico não duvido, mas não tanto das prescrições debelatórias do mal, hesitei muito (daí o atraso desta resposta) em, ao fim de tantos anos de afastamento, decidir-me tomar o tempo dos Colegas, no lúcido entendimento de que as opiniões de um octogenário bem medido, nada ou muito pouco poderem interessar a uma Direcção (ou seus representados) portadora de outras referências, alheia a tudo e a todos, que não sejam fac-símile da sua própria geração em processo de se converter no modelo cultural do homem do 3ºmilénio, cujo desabrochamento já se encontra em plena fase de mutação.
Ora, eu sou um espécimen genuíno do século XX, aquele século que, segundo o autor do livro A Era dos Extremos foi o mais curto de toda a vida da humanidade, já que começou em 1914 (tal como eu) com o eclodir da 1ª Grande Guerra Mundial e veio a terminar em 1991 com a queda do Muro de Berlim, dois marcos que alteraram irreversivelmente a vida e o equilíbrio do Mundo e dos povos, fazendo com que nada voltasse a ser o que era antes. Assim sendo, 77 anos da minha existência foram consumados e consumidos entre essas balizas cruciais - verdadeiro período em que se exibiram as mais eloquentes e dramáticas contradições de uma Era em extinção - o que leva a sentir-me já fora do meu habitat e, como tal, feito intruso no meio dos obreiros de uma sociedade empenhada na construção do Homem Novo, na esperança, talvez, de atingir a almejada robotização global de todos os comportamentos, dispensando os valores e os conceitos que moldaram o carácter da minha geração, que nada tem que ver com a perspectiva sumamente individualista, mecanista e consumista dos Novos Tempos, padrões estes que nunca me guiaram. Com esta diatribe não estou, nem a pôr Virtude na minha geração, nem Defeito na geração seguinte, mas apenas dizendo que são Coisas diferentes, que passaram a não poder ser equacionáveis dentro dos mesmos cânones valorativos das respectivas filosofias de vida e da sociedade. Hoje, vive-se a crise da transição. Dramática, porque já não se ajusta ao passado próximo, nem se comporta como uma consciência esclarecida frente à interrogação do futuro.
Face a todas estas adversas circunstâncias mandaria o bom-senso incitar-me a prosseguir o meu prudente e bem avisado silenciamento aos ecos vindos da Direcção da SPCV neste momento tão difícil da sua história. Contudo, ainda afeito aos sentimentos de solidariedade e associativismo que sempre cultivei, e ao meu amor e respeito que sempre devotei à Nossa Sociedade, levam-me a correr o risco de vos dirigir algumas palavras, honestamente sem a menor convicção do seu interesse prático... e até teórico, mas apenas para fazer sentir que os vossos esforços e empenhamento, na busca de soluções, são seguidos e agradecidos por muitos colegas que, tal como eu, depositam a maior confiança e esperanças nos guardiões das Ciências Veterinárias consubstanciadas nessa vetusta e centenária Casa de tão prestigiosa história agremiativa e interventiva. As minhas sugestões, portanto, só servirão para mostrar que nos obrigámos a pensar com a melhor das boas vontades, isto sem qualquer outra pretensão de conveniência ou auto-convencimento.
Desde ainda estudante olhei para a Sociedade com venerando respeito perfilando-se no meu imaginário como a Ara onde se sagrava a valorosidade das Ciências Veterinárias de criação portuguesa e custodiava todo o seu conteúdo intelectual e científico, constituindo-se em património de indelével importância no quadro da cultura e do progresso nacionais, e conquistado prestígio entre as suas congéneres das várias outras áreas científicas nacionais e estrangeiras. A SPCV legitima o direito ao respeito reclamado por uma classe profissional ainda mal avaliada pelos consensos das diversas elites intelectuais portuguesas. O seu desaparecimento ou extinção corresponderia a uma traição aos nossos antecessores, às nossas glórias, aos nossos Mestres, aos nossos vindouros. Ninguém merece tal desfecho. Nem nós próprios.
A classe veterinária sempre se mostrou com fraca apetência para o actus rerum, o que lhe tem trazido bastos prejuízos. Está, de um modo geral, longe do Terreiro do Paço e é pouco atraída para o Humanismo e para as Ciências Sociais na sua melhor asserção, o que não tem nada a ver com a política de cordel. Estas duas circunstâncias, a meu ver, têm-lhe sonegado oportunidades de ensaiar o visionamento grande-angular dos magnos problemas económicos, sociais e, genericamente, do desenvolvimento que toda a humanidade enfrenta e Portugal sente na pele como sarna canina.
O passado da SPMV/SPCV que vem desde o raiar do século, apresentava-se-me como um alfobre de glórias a que se juntaram momentos da maior relevância científica e nacional, e que na nossa Sociedade foram motivo de históricos debates que se repercutiram em positiva intervenção e prestigiante imagem junto dos Poderes Públicos.
A Sociedade tinha voz em muitas decisões do Governo no âmbito da sanidade, produção animal e ensino veterinário. Foi por assim dizer um órgão consultivo quase obrigatório do Governo. Tenho ainda na memória o nome desses ilustres Colegas e o enunciado dos problemas que os preocupavam que, sendo de índole veterinária, alargavam-se sempre aos campos da economia e das políticas de desenvolvimento a preconizar. Conheci tudo isso muito antes de me licenciar, já que tive a bem-aventurança de meu Pai ser agrónomo, formado pelo ex-Instituto de Agronomia e Veterinária e de muitos desses nomes ilustres, pessoas e assuntos fazerem presença na Casa Paterna.
No entanto, o que eu desconhecia quando assim pensava com a ingenuidade própria da juventude, era que no momento da minha licenciatura (1938) a SPMV vivia (ou vegetava?) uma dolorosa crise de enjeitamento, quase rejeição ou displicência. E, mais do que por qualquer outra razão circunstancial - que não vou descartar -, ter sido o seu encurralamento desamoroso num sótão escuro e poeirento da velha Escola em obras ocupando um tapume feito de portas velhas que o director da Escola condescendeu que aí se instalasse a enjeitada Sociedade, a Causa, como que a estocada misericordiosa do diestro, que levaria às portas da morte aeternum vale, essa relíquia. Quanto à actividade, essa roçava as raias do mais profundo dos comas, reduzindo-se praticamente à cobrança das quotas, que só se mantinha por abnegada e beática teimosia de um velho e modesto Cobrador (o Moreira) que foi o verdadeiro anjo da guarda, impoluto guardião dos valores patrimoniais da Sociedade, incluindo o dinheiro colectado (dos que pagavam, já que os barões se sentiam desobrigados dessas mesquinhezas) que os membros da Direcção recusavam aceitar das suas mãos e que por isso o modesto funcionário guardava debaixo do colchão como cão de fila. A este heróico funcionário talvez se tivesse ficado a dever a sobrevivência da Sociedade até que a superação da crise fosse conseguida... não por causa desses "gestores", mas apesar deles.
Com efeito, por inimaginável que possa parecer, o presidente da direcção da SPCV de então era, simultaneamente, o director da Escola Superior de Medicina Veterinária. Um professor. É difícil admitir, mas aconteceu. Com esta denúncia só peço que "não se tome a nuvem por Juno". Só aconteceu. Há sempre um "Acontece", como a nódoa que cai no melhor pano.
Por essa época formava-se uma geração de veterinários disposta a desencalhar esse velho símbolo que a Sociedade ilustrava - qual cruzador Adamastor, mito representativo do Ultimato de 1890 que ofendeu e humilhou Portugal. Heroína, também, desse sentimento patriótico rendido à erudição, houve que chamá-la de novo à procela das Ciências da Veterinária, o que foi feito numa operação surpresa, a que se poderia dar o nome de "força de intervenção" embora pacífica mas denunciadora da situação, ilustrada com a fotografia das vergonhosas instalações, legendando-se "A FOTO DA VERGONHA", a qual foi tomada com cumplicidades várias e absoluto segredo. Com ela sai um MANIFESTO exortando à ajuda moral e material de todos os veterinários de norte a sul, ilhas e ultramar para que rapidamente a Sociedade possa recuperar a dignidade perdida. Foi a pedra no charco. O brio e o orgulho da classe despertados. Um grande movimento nasceu. Uma subscrição entre colegas rendeu o suficiente para a Sociedade se instalar no Largo do Chiado em confortáveis dependências da Associação Central da Agricultura Portuguesa, mediante a respectiva renda, e pudesse adquirir todo o mobiliário condizente. Esta resposta não tinha nada que ver, e até se contradizia, com as votações do "Sim" ou "Não" nas AG (a que nunca assisti por discordância absoluta do referendo) quando se pôs o dilema "Sociedade versus Ordem/Sindicato" com o resultado favorável à segunda. É que uma coisa era a Classe - todos os veterinários - outra coisa eram as AG mais sensíveis, sobretudo à Ordem, vendo nela apenas uma conquista social, como então era vista a sua falta considerada discriminatória em relação à existente Ordem dos Médicos. Por isso a exigiam. As AG eram na realidade a expressão de uma minoria. E a prova foi eloquente sem lugar a dúvidas e especulações. Ninguém ia dar dinheiro por uma coisa que votava à extinção.
Houve quem não gostasse e se sentisse enxovalhado por fedelhos desrespeitosos e mal comportados e acusados de violadores da porta do "reduto". Mas, não foi só por isso. Iniciou-se a campanha da actualização de quotas atrasadas - em muitos casos vários anos - (e não eram os mais anónimos que o faziam) e a entrega imediata dos livros da biblioteca, em grande parte retirados sem requisição, mas que o velho funcionário registava discretamente na sua escrita. Assombrosa dedicação...
Por estas e por outras, que não vêm ao caso, este período foi alvo de um certo branqueamento de dupla finalidade: minimizar a importância dos factos; reduzir ao anonimato os tais fedelhos, que os próprios promoviam para retirar aos factos qualquer carácter de imaturidade. Por isso, esses mesmos fedelhos trouxeram para a sua "Causa" um Professor, figura de proa e respeitado que aceitou a sua candidatura a Presidente da Sociedade. Os fedelhos não lutavam por penachos.
De 1943 a 1945 as receitas subiram 40% o que se ficou devendo, não só a uma significativa entrada de sócios, como à cobrança de quotas em considerável atraso, como se houvesse duas categorias de sócios, ambos com os mesmos direitos: os sócios que são sócios e os sócios que não são sócios. Estes últimos, os dignitários; os outros, a patuleia. Desrespeitosamente foram caçados privilégios que, sem terem jamais sido conferidos por alguém, foram assumidos por muitos, ou por hábitos de inveterado desleixo, ou por deliberada intenção por se considerarem com direito a pôr e dispor da Sociedade, recebendo tudo sem dar nada.
Estava instalada a confiança e crescia o entusiasmo e a esperança.
Aprofundaram-se os contactos com a Guiné, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Macau, Timor e Ilhas. Em todos estes territórios encontrou-se um delegado ad hoc para representar e dinamizar na região as actividades da Sociedade, captando novos membros, recolectando as quotas e angariando colaborações para a Revista, dando informações de foro veterinário. Abre-se uma delegação no Porto onde existia um importante núcleo de colegas com grande iniciativa, trabalho científico, experiência e espírito colectivo. Revigoram-se as relações com outros países, sobretudo Brasil e outras Sociedades. Expande-se a permuta da Revista com outras congéneres estrangeiras, incluso a China, Japão, etc. Comemora-se (em 1952) com grande comparência de colegas o cinquentenário da Sociedade com um rico programa de actividades - visitas de interesse profissional, conferências, convívios, banquetes, etc. - tendo-se publicado um número especial da Revista (nº 342-343) [Revista de Medicina Veterinária - Órgão da Sociedade Portuguesa de Ciências Veterinárias, Vol. XLVII, Julho-Dezembro de 1952. Passou a Revista de Ciências Veterinárias em Janeiro de 1953]. Remodela-se a Revista com novas rubricas e actualiza-se a sua publicação atrasada de alguns anos. Fazem-se novos estatutos, nascendo a Sociedade Portuguesa de Ciências Veterinárias, dando assim mais coerência ao título de Sociedade tendo em conta as actividades dos veterinários fora do ramo estrito da Medicina, mas dentro das competências curriculares da sua licenciatura, campo em que muitos exercem a sua actividade profissional (leite, carnes, lãs, curtumes e pescado). Elegem-se destacadas personalidades portuguesas e estrangeiras sócios honorários, tais como: Prof. José Miranda do Vale, único sobrevivente fundador da Sociedade e figura de grande prestígio; Prof. José Maria Rosell, lactologista de renome internacional que em Portugal, a convite do Director-Geral dos Serviços Pecuários, leccionou cursos de especialização leiteira a mais de duas dezenas de veterinários; Prof. Egas Moniz, Prémio Nobel da Medicina. Tudo iniciativas que nunca tiveram nada a ver com condecorações oficiais em praça pública ou com salamaleques a ministros.
Com esta rapidíssima e sumária revisão sobre os acontecimentos ocorridos em escassos cinco ou sete anos, quem poderá imaginar que dez anos antes (1934) a Sociedade estava votada à dissolução por uma votação em AG da Sociedade na alternativa Ordem/Sindicato? Como se fossem instituições intersubstituíveis? Como se fosse a mesma coisa um Órgão Corporativo, obediente e submisso às regras do estado e uma Associação livre, de expressão científica, de discussão aberta sem tabus políticos e medos policiais? Era a época. A mesmíssima época contemporânea daquel'outra em que aqui ao lado as tropas de Franco, os "Carlistas requetés" berravam a plenos pulmões "viva a morte, abaixo a inteligência" e cá se encerrava a Escola de Magistério Primário por falta de candidatos, num país com 30 ou 40% de analfabetos e quando em muitas escolas primárias era o "regente de ensino", um indivíduo apenas com a 4ª classe, o leccionador. O que interessava uma Sociedade científica a menos?
Não falo da Ordem ou Sindicato agora integrados no regime democrático e que nada têm que ver com o passado. Mas falo da Sociedade como instituição cultural, sempre livre, sempre expressando o pensamento colectivo dos seus membros. Agora como antes.
A Ordem e o Sindicato hoje são órgãos de Classe respeitáveis e indispensáveis ao exercício da democracia, disciplina e ética de classe e defesa dos direitos profissionais. O processo evolutivo e transição de um regime para o outro nem sempre tem sido fácil e rectilíneo, mas está em boas mãos, e eu acredito que a Direcção actual - para só falar desta - terá todo o apoio e confiança da Classe Veterinária para que a SPCV continue a cumprir os seus mais altos desígnios.
Na minha opinião a crise da Sociedade é mais um fenómeno cíclico que uma calamidade sem solução.
No escalpelamento, embora superficial, que fiz da crise de quarenta - que me atrevo afirmar ter roçado as raias do abismo - ficou claro não ter sido o recurso a "realizações que beneficiem os colegas" que fez melhorar o nível de adesão à Sociedade, só porque não era o problema do número de sócios o maior responsável da situação, mas sim o de fazer ressuscitar o perfil de dignidade e respeito esquecidos da nossa única colectividade científica que o desgaste do tempo foi deixando atenuar-se, por demasiado saprofitismo sobre a memória das glórias do passado em prejuízo da construção do futuro, como se essas tais glórias fossem obrigadas a suportar as insuficiências e incapacidades presentes.
O problema não está, portanto, a meu ver, em inventar benefícios para aliciamento de sócios, como se se tratasse de uma promoção comercial. O problema está em sensibilizar todos os protagonistas das Ciências Veterinárias para o amor próprio e colectivo pelas suas realizações e progresso na defesa da economia nacional e da saúde pecuária e humana, posturas que não se revêem nas imagens do tipo de veterinários emprestando a imagem e o título para reclamos de comida para o cão.
Evidentemente, há que captar mais sócios, mas também há que actualizar conceitos a começar pelos próprios estatutos que terão de ser remodelados, não na continuidade dos espartilhos de "madame" modelo "Arte Nova", mas de acordo com as transformações operadas desde a própria profissionalização das Ciências Veterinárias num sistema diferenciado de licenciaturas, até às adaptações provenientes do alargamento da inter-acção das instituições nacionais, comunitárias e outras estrangeiras, nomeadamente, no âmbito da lusofonia, por forma a posicionar a SPCV nos fluxos da cooperação em programas integrados da informação e da sua projecção como entidade presente, activa e capacitada dos seus membros como intelectuais, como cientistas, como cidadãos do Mundo, atentos e críticos. É altura de esquecer as "Conversas em família", lembrando os velhos tempos da "Primavera Caetanista", em que mudando o nome, se fica sob a mesma nirvânica infalibilidade do statu quo.
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