domingo, 12 de outubro de 2008

A CRISE - CADA COISA TRAZ EM SI A SUA CONTRADIÇÃO

No preciso momento em que todos os debates e análises se ocupam da tão propalada crise e se tenta descobrir a pólvora seca debaixo de água, camuflando os verdadeiros responsáveis de mansos cordeiros e de "vítimas", recordámos, esta tarde, em conversa com Vieira de Sá que, já em 2004, no seu livro Viagem ao Correr da Pena, o autor se debruçava sobre os problemas inerentes ao capitalismo selvagem, ao neoliberalismo e à globalização.
Deixamos aqui alguns excertos, que mais parecem escritos sobre a realidade que estamos a viver em pleno ano de 2008.
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«Viver a utopia era, mesmo assim, possível. Havia boas razões para isso, com a esperança de que, com o fim da Guerra Mundial, a democracia seria, por direito próprio, proclamada para valer. Porém, o grande revés de tudo isso que era pensado foi, desde logo, a sobrevivência de Salazar e Franco após a derrota do nazi-fascismo. E, a partir daí, toda a reconstituição paulatina - apenas com a mudança da sede do Reich para a América do Norte - dos ambicionados poderes hegemónicos de domínio absoluto do Mundo, agora com armas mais poderosas, nãp só militares como económicas, e o totalitarismo da globalização. No entanto a utopia existe, configurada na implosão do capitalismo selvagem, ele próprio, quando chegado ao cume da sua última etapa de crescimento. Então renascerá das cinzas um novo mundo. Será para daqui a vinte, trinta anos? Os momentos históricos não se contam por minutos, horas, ou dias, contam-se por decénios e séculos. Isto se o planeta aguentar a destruição a que está sendo sujeito em favor apenas do banditismo do capitalismo selvagem, tomando, pelo dinheiro e pelas armas de destruição maciça, a riqueza de todos, o que já esteve mais longe, bem mais longe desse fim já em curso, sem esquecer o caos ecológico.
[...]
Assistimos agora ao mais inédito acontecimento da história do mundo. A aproximação suicida do pico de abrangimento e concentração da riqueza do planeta por mor do imperialismo expresso no neoliberalismo global, incluindo as riquezas de Marte, se lá as houver, vislumbrando-se que o século XXI venha a assumir-se a arena presumível da sua defecção, quando for chegado o último degrau da própria contradição, como dialecticamente é mister, e cujos sinais objectivos de sustentação se vão sentindo cada vez mais ameaçados, apontando para a inevitável derrocada, tão global quanto o ecumenismo das forças opostas se avolumam, não sendo fácil apor soluções intermédias, pois não se trata de reformar um sistema, mas de substituí-lo, invertendo os propósitos científicos de índole sociológica e de desenvolvimento económico, o que apraz alcançar com urgência e determinação. A experiência fala por si. É imperioso ir ao encontro desse desideratum, travando o passo quanto antes ao devorismo grassante, despertando as consciências frente a riscos de outra gravidade e de bem mais sérias consequências e incerta resolução, pois estas são já do foro das patologias ainda mal conhecidas que ensombram os cientistas e o mundo.
[...]
Derrubou-se o muro de Berlim, o "muro da vergonha" como se lhe chamou. Derrube-se agora o muro da fome, o muro da demência, o muro da morte, o muro do holocausto de uma civilização que agoniza. Todos são o mesmo muro. Mas estes agora não são da vergonha, mas do crime calculado e premeditado.
O problema agudiza-se e cada vez mais vertiginosamente (tempo da história). E também mais vertiginosamente se aproxima do pleno e dialéctico princípio de que "cada coisa traz em si a sua contradição" (Marx). Assim, o globalismo neoliberal não poderá evoluir para lá dos seus próprios limites que se consubstanciam na autofagia. E quando já fervilha a contestação das inquietantes turbas de esfomeados, de desempregados, de sem-abrigo, de sem-direitos em todos os recantos da Terra, todos sistematicamente orientados para um sistema filosófico de expoente inverso, ou seja, valorizando e dignificando o trabalho e garantindo os direitos estruturantes fundamentais, em última análise, o direito inerente à dignidade humana, dando aqui relevo à sanidade mental, a mais dramática de todas as sanidades.»
Fernando Vieira de Sá, «Prefácio de Coisa Nenhuma», Viagem Ao Correr da Pena, cit., pp. 17-18, 20.

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