sábado, 18 de abril de 2009

SOCIEDADE PORTUGUESA DE CIÊNCIAS VETERINÁRIAS

POR MOR DE UMA DIGNIDADE EM RISCO




NOVOS «JOVENS TURCOS»



PRECISA-SE

«Funérea campa com fragor rangeu»




é logo o que aflora à mente, soletrando com emoção a trágica lírica de Soares de Passos de seu livro Poesias (1865), ao ouvir por casualidade que a Sociedade Portuguesa de Ciências Veterinárias (SPCV) teve ordem de despejo da sua sede, ocupando uma área da antiga Escola Superior de Medicina Veterinária (desactivada) em favor do alargamento das instalações contíguas da Polícia Judiciária, tendo dois meses para empacotar os seus pertences a fim de serem armazenados num cubículo, cedido como esmola sem motejo da consciência de quem quer que seja, na nova agora Faculdade, à laia de purgatório sem data para exumação, recaindo fatidicamente em idêntica fossa de onde saíra há mais de 60 anos, jazendo então num sótão entre tabiques feitos de portas velhas do edifício em obras de acabamento e para onde fora chutada em tempos de anemia social por força da castração ideológica e cívica que muitos conheceram na pele e ficaram baptizados, o que foi a sorte, face ao que se passa na actualidade. A História repete-se. É um pouco o que dizia Brito Camacho, sempre sarcástico: «As cadeiras são as mesmas, os c.. é que variam».
Valeu o acaso de uma nova geração recém-diplomada ter sabido do atentado quando alguns desses jovens pretenderam inscrever-se sócios, como sendo um dever ético e complementar, logo despertando a obrigação de lançar um Manifesto, com fotografia do antro (só assim se acreditava) - fotografia captada por fotógrafo profissional, às escondidas e em horas mortas. O perigo era a denúncia (nunca descartável) e as consequências pidescas, que as havia em toda a parte, mas tinha-se de correr o risco. A mocidade é heróica, o que lhe dá beleza -, a delapidação dos valores morais e históricos que o casus belli espelha, apelando à consciência de classe, ao decoro, à decência, ao pudor e à impossibilidade de funcionamento e delapidação dos valorosos objectivos da instituição, iniciativa que, levando o caso para a chalaça, alguém baptizou de movimento dos «Jovens Turcos», de que fala a História Universal (Novos Otomanos, 1865), revolucionários intelectuais turcos lutando por novo espírito e Nova Ordem, outras perspectivas de vida e outra consciência de cruzada, que é tudo quanto o caso presente alveja. Em boa verdade os barões da Classe não aprovam e classificam-na de desordeira e desrespeitosa face aos egrégios vultos mais visíveis e ao catecumenato da doutrina oficial. O antro não é desrespeitoso? - pergunta-se.
Da denúncia resultou um renascer da actividade que bem pode espelhar-se nas comemorações do cinquentenário da Sociedade que se retratou no volume especial da Revista de Medicina Veterinária (Julho-Dezembro 1952, nº 342-343) [ler também F. Vieira de Sá, Cartas na Mesa - Recordando Bento de Jesus Caraça e a «Biblioteca Cosmos», pp. 61-64], onde entre muitas iniciativas se regista a subscrição, aberta entre veterinários, que ultrapassou todas as expectativas e que permitiu a compra de móveis para a nova sede em dependência alugada à Associação Central da Agricultura Portuguesa, no Largo do Chiado, em edifício que ocupa toda a frente do fundo do largo (2º andar) e, posteriormente, em idênticas cláusulas, na Rua D. Dinis - nº 2, ao Rato, com entrada privativa. A subscrição totalizou a quantia de 12 333$40 (cerca de 4.000 euros, para os valores de hoje, segundo tabelas do Banco de Portugal), o que para o tempo e as circunstâncias foi empresa inusitada.
Mas, só como exemplo, cita-se ainda: as receitas da Sociedade, que se saldavam em 18 contos (1937), subiram a 96 contos (1945); as despesas com a revista, no mesmo período, foram de 6 e 32 contos, respectivamente.
Não seria justo silenciar um gesto de alto significado e até inesperado, cheio de sentimentos de grande simbolismo que é possível contemplar e que se deve à memória do veterinário José Maria dos Santos [JMS], cujo testamento (cfr. em site que indicamos mais à frente) é um exemplo da sua bondade e escrupulosidade, difícil de ultrapassar em bons sentimentos. JMS foi um dos fundadores da SPMV

sendo ainda um jovem profissional que, aliás, exerceu durante escasso tempo, o que não o impediu de ficar no Quadro de Honra de Civismo da Classe só por essa iniciativa, pois casara-se com uma pequena proprietária agrícola, fazendo desse embrião uma fortuna calculada em 10.000 contos (1913) e propriedades que se estendem por uma área superior a 40.000 hectares, qualquer coisa como 400 quilómetros quadrados de terra (não se trata de latifúndios, mas de desenvolvimento produtivo: o maior olival do mundo, a maior vinha do mundo, etc. Eu próprio conheci Machados, Rio Frio, o mesmo é dizer o maior olival e a maior vinha do mundo, respectivamente.
No site que abaixo indicamos, e que recomendamos a consulta, lê-se o seu assombroso testamento, não esquecendo todos os seus parentes e colaboradores de todos os níveis. Entre estes herdeiros um deles de primeira linha de geração, que já não recordo o nome, foi quem subscreveu a maior e invulgar dádiva, justificando-a, dizendo ser uma forma de homenagear a memória do seu antepassado, numa carta que dirigiu à Sociedade. Ele, se fosse vivo, faria o mesmo, sem sombra de dúvida, afirma.


Na presente deplorável conjuntura vista por qualquer prisma, não se deveria conceber ocultar e não discutir a decisão de expulsar a Sociedade da sua casa, pois essa propriedade pertence ao Ministério da Educação e, ainda por cima, mantendo o vínculo na Veterinária que sempre serviu, quando a Judiciária está vinculada ao Ministério da Justiça, consequentemente a outro património. Nada, portanto, justificaria a anexação, como se fosse o corredor de Danzig e a sua brutal ocupação pelas tropas nazis... todos se lembram, sem saudades. No presente caso é a comodidade e o espaço desejável à Polícia que tem prioridade. À luz da razão e dos valores em causa é um atentado à lei do mais forte para atender à comodidade alheia, pois na prática a SPCV - que é Científica, não de Recreio - é que vê a sua actividade paralisada por tempo indefinido, talvez para sempre, o que significa um enxovalho à cultura, o que não se admite num país que pretenda ser civilizado e culto. Tudo isto cheira a Terceiro Mundo, a indiferença, a falta de sensibilidade. Mas a polícia já pode espanejar-se. Um grande avanço no progresso da Pátria. É notícia de TV.
Tudo isto que aqui se escreve constituiria com a maior das facilidades o peso e qualidade dos argumentos para discutir em qualquer tribuna ou praça pública. Porém, a verdade é que tudo correu na maior indiferença, ou, pelo menos, silêncio e mansidão, o que resultou num vexame de um enterro culminando na vala comum, como produto fora do período de validade.
Teria sido mais nobre a investida de quaisquer novos «Jovens Turcos». Talvez os resultados tivessem sido diferentes. E que não fossem, pelo menos era um julgamento público, a verdade sabida para quem a má consciência não gosta e lhe chama arruaça, pé rapado e outros mimos.
Não culpo pessoas, que passam. O que fica é que é emblemático - a entidade -, neste caso a Universidade, pendor de Cultura, pólen da Ciência, à qual se exige alargar a cátedra ao palco da vida e mais sensibilidade.
A profissão veterinária sem uma vertente de intervenção científica associativa actuante, não passa de uma profissão de alveitar. É isso que se quer? Há que meditar. E, para isso, é preciso honorificar as suas instituições. Não se confunda Sociedade Científica com Ordem ou Sindicato. São coisas diferentes, não são intersubstituíveis. A SPCV é a cátedra superior de respeitabilidade que a Classe exige e a que tem direito.
Justificar-se-ia um amplo debate de toda a Classe sobre esta delicada situação: a SPCV encaixotada sine die. Que futuro? Há que reflectir. Há que acordar. Ninguém o faz por nós.

F. Vieira de Sá
Lisboa, Abril de 2009
Agradecemos ao Eng. Ruy Paiva e Pona a preciosa colaboração que prestou ao indicar-nos o texto que o leitor pode encontrara no link acima referido.

Sem comentários: