sábado, 27 de fevereiro de 2010

FOME - NÓ GÓRDIO DO PROGRESSO DA CIVILIZAÇÃO

«[...] a fome é a expressão última para a salvação do sistema capitalista agravado pelo subdesenvolvimento do Mundo sujeito à exploração de matérias-primas industriais e energéticas do capitalismo para o monopólio.»
F. Vieira de Sá,
O Reino da Estupidez nos Caminhos da Fome - Memória de tempos difíceis,
Edições Cosmos, 1996, p. 249,

Toda a Humanidade sabe da existência da fome, e parte substancial dela sofre-a na pele, constituindo a nódoa mais negra e vergonhosa da moralidade humana em qualquer civilização, independente das luzes da ribalta da espectaculosa aventura do progresso científico em todos os domínios.

Sendo assim, e tratando-se do maior de todos e gravosos problemas da Humanidade, não deixam de se interrogar as consciências pelo facto de nunca a Fome se apresentar como tal, mas sim como um fenómeno decorrente da própria vivência em cada quadro social inerente aos factores da emergência da vida, tal como toda a existência. Tudo isto em paliativo da má consciência colectiva.
Vendo as coisas como se querem ver pelo prisma do fatalismo e apelativo de qualquer ópio religioso consumido, explica talvez a razão de nunca o problema - o facto físico - ter sido objecto de incentivo de um Prémio Nobel em honor da luta contra a fome já que as há em notória variedade e para todos os gostos.
O Nó Górdio, levantando o véu da hipocrisia e desnudar as raízes do fenómeno, E para bem se saber do que se trata, parece recomendável explicar a fábula que vem pôr ao léu o pomo do problema, transcrevendo da Enciclopédia Internacional (20 volumes, USA, 1963 - tradução informal para mais abrangente acessibilidade) a entrada «Gordius»:
«Legendário rei da Frígia, após o qual a capital passou a chamar-se Górdio. Um oráculo tinha previsto que viria uma carruagem conduzindo Frígia, um Rei que iria terminar com distúrbios internos. Quando o aldeão Górdio apareceu nessa carruagem o povo chamou-lhe rei. Górdio, por gratidão, dedicou a carruagem a Zeus, atrelando a sua carruagem com um complicado nó. Um oráculo declarou que, quem desfizesse o nó, deveria tornar-se Senhor da Ásia. Séculos mais tarde Alexandre o Grande desfez o nó com um golpe da sua espada e prosseguiu na conquista da Ásia. "Desfazer o Nó Górdio" é equivalente a resolver o problema por simples iniciativa.»
Voltando à fome e deixando-nos de oráculos, transferindo apenas o pensamento que a vida constrói, dir-se-ia que toda a questão se baseia no aparecimento dum Górdio-de-espada-à-cinta para desfazer o nó da infâmia ou do ripanço, trazendo para a ribalta a discussão das raízes da fome, tal como a dita se chama, se exprime e se manifesta na vida, sem subterfúgios.
Enquanto, porém, não aparecer um Górdio-de-espada-à-cinta para desfazer o nó da política monetária ou outra equivalente, seria interessante abrir aqui uma tribuna para reunir opiniões, deixando os amuletos na gaveta, abrindo as consciências e olhar para o mundo no respeito do seu próprio dever cultural de cidadão pensante, discutindo o nas suas próprias raízes e não no travesti, mascarando a ignomínia, o que até agora tem sido tabu, usando subterfúgios que levam a congeminações teorizantes das quais se definem várias razões que levam ao fenómeno, não citando contudo uma que é a única autêntica, omnipresente e omnipotente: a incorrecta distribuição da riqueza, esta resultante, não de uma política democrática, mas liberal. A experiência o afirma. A democracia que tolera que, à sombra da palavra e da ideia, se achincalhe o ideal em favor do Poder Financeiro, que na sua própria génese pode ser tudo menos democracia.
Quem queira discutir, escreva.
Fernando Vieira de Sá

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

PIRATARIA À SOLTA

Foto 1. Casal Gonçalves, sem Gageiro, no enquadramento que utilizámos no texto «Em memória de Vasco Gonçalves».

Fot0 2. A mesma fotografia, aqui com Eduardo Gageiro.

Foto 3. Sesimbra, 1999. Uma tarde entre amigos.
Eduardo Gageiro fotografa o casal Gonçalves. Ao centro, a embaixadora de Cuba, Mercedes Aguiar. À esquerda, de perfil, Monteiro Baptista.
Para não correr o risco de ser eu o pirata, quando reproduzi neste blogue a foto 1, ilustrando o texto «Em memória de Vasco Gonçalves», agora reproduzida num blogue e num jornal sem referência à fonte*, faltando assim ao preceito elementar de boa educação, sem consciência do abuso de confiança, dando a impressão de estarmos vivendo em plena selva, onde só os instintos regulam os actos. Isto, pelo menos, em sede da imprensa hodierna. Nesta matéria os avanços são visíveis, os exemplos são aos magotes. Cópia de segunda geração é um facto no presente caso. De qualquer modo, em qualquer circunstância é um dever sempre obrigatório que, quando não ocorre, trata-se de ausência de civilidade e falta de brio. É um «todo o terreno».
As três fotos ilustram bem a autenticidade dos sentimentos, a que só os próprios dão afecto e saudade.
Fernando Vieira de Sá
Lisboa, 22 de Fevereiro de 2010


* Note-se que, como resposta ao nosso protesto, obtivemos do jornal em questão a indicação de que a foto teria sido retirada de um blogue, que identificou. Apenas! Apenas e após um insistente segundo protesto. Contactado o blogue, obtivemos, não só uma resposta imediata, como o correspondente pedido de desculpa e a promessa, cumprida de imediato, de inserir no blogue uma referência à fonte. Duas atitudes bem distintas que aqui deixamos registadas e que distinguimos, convidando-vos a visitar o blogue e saudando daqui, cordialmente, António Abreu.
[Fotos de F. Vieira de Sá]

domingo, 21 de fevereiro de 2010

RELÍQUIA

Aos amadores de automóveis e de corridas em Portugal, ofereço este documento que conta 51 anos, sendo já uma relíquia, que encontrei há dias entre outros papéis deixados por meu pai. Legenda: «O "Fiat" do Infante D. Afonso, vencedor da primeira grande corrida de automóveis em Portugal, em 1902, entre a Figueira da Foz e Lisboa» (recorte do Diário de Notícias de 21-II-1959).
Fernando Vieira de Sá

sábado, 20 de fevereiro de 2010

GAGO COUTINHO

Legenda: «O hidroavião Lusitânia pousado nas águas do Tejo, em frente da Torre de Belém, no dia em que Gago Coutinho e Sacadura Cabral iniciaram a gloriosa viagem da travessia do Atlântico Sul», in Diário de Notícias de 20 de Fevereiro de 1959, dois dias depois do seu falecimento, conforme nota manuscrita [«Gago Coutinho falecido em 18 de Fevereiro de 1959»], faz hoje precisamente 51 anos. Mais um documento colhido entre os papéis de F. Vieira de Sá, guardado e anotado por seu pai, que aqui deixamos como forma de assinalar a data.
Gago Coutinho nasceu no dia 17 de Fevereiro de 1869 e faleceu no dia 18 de Fevereiro de 1959, um dia depois de completar 90 anos.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

RECORDAR PARA NÃO ESQUECER

http://www.lubitsch.com/

Ao ler, no Diário de Notícias de 3 de Fevereiro de 2010, a coluna de João Lopes com o título «Memórias do tempo de Casablanca», um dos dez melhores filmes seleccionados para os Óscares, logo me recordei de outra célebre obra-prima cinematográfica da mesma época, O Céu Pode Esperar, [Heaven Can Wait, de Ernst Lubitsch], e que curiosamente o colunista também não resistiu a citar, entre outros. Talvez, porém, João Lopes não se recorde quanto o filme O Céu Pode Esperar sofreu nos écrans portugueses por força de uma intervenção cirúrgica que sofreu e que fazia toda a diferença para o espectador, por não se perceber a razão do título, já que o filme termina exactamente quando o figurante em causa toma o elevador, que o levaria ao Céu por decisão do Diabo. Porquê então O Céu Pode Esperar?
Nesse tempo eu estava fora de Portugal e não fugi à brotoeja cinéfila que contagiava muitas plateias. E não me arrependi, achando o título do filme de alta inspiração crítica, subtil e condescendente, apenas apontando a uma reflexão sem urgência («pode esperar»).
Com tão díspares opiniões sobre a relação título-imagem, contrariamente à coerência de ambas as críticas, só se entende recordando um detalhe, um só, pelo qual se resolve a charada.
A história começa quando o protagonista, homem bem-parecido, é recebido pelo Diabo, Senhor omnipresente do Inferno, pedindo-lhe guarida, num rasgo de auto-flagelação à luz da probidade social, ao que o anfitrião lhe responde dizendo-lhe que a coisa não era assim tão fácil como o pretendente pensava, pois exigia saber quais as razões que levaram à sua solicitação, e só então resolveria, o Diabo, se sim ou não o admitiria. «Aqui não há compadrios!» - diz o Diabo. Assim começa a história que é o corpo do filme.
Tal história, que aqui e agora se vai contar muito resumidamente, mas suficiente para se compreender o justeza da petição-grito de consciência, arrependimento de alma, agora vagabunda à procura de acolhimento que só vê lugar na fornalha do Inferno. E conta o seu rosário de culpas: ele era casado com uma mulher admirável com quem mantinha uma relação idílica de altos sentimentos, prendando-a com jóias e lembranças, todas transmitindo o calor de um lar perfeito, às quais a adorável esposa se vergava. Contudo - continuando o depoimento - fora de casa todos os obséquios de alma, com a maior frequência eram consentidos face a outras divas ao virar da esquina, a cujos corações fazia chegar a sua inegável amorosidade, sempre exemplarmente reconhecida, fazendo assim distribuir amor e mais amor em vendavais de felicidade. Por isso mesmo ele estava ali, agora presente ao reino do Inferno, pois sentia na sua consciência um remorso, face ao compromisso conjugal, que só no Inferno se redimia.
Nesta altura o Diabo, que tinha ouvido todo o depoimento desabonatório numa óptica do espartilho convencional, adverte: «Lamento, mas não posso recebê-lo, pois, contrariamente à sua convicção, o senhor é uma alma generosa, fazendo feliz não uma mas tantas mulheres, tantas quantas a sua permissividade acolhe. E, se me pede prova, vou-lhe provar a verdade das minhas palavras, mostrando-lhe no écran da minha instalação televisível, que estou ligando à Terra para assistir ao que está a passar-se no cemitério a poucas horas do seu funeral, à beira da sua campa, em que o quadro é um montão de jovens amantes, todas a carpir lágrimas de dor, encharcando lenços, incluindo a consorte, partilhando com as outras o sofrimento da morte do ente amado, ignorando rivalidades, sentindo só o que dele receberam - amor sem condições». Todas univocamente o choravam. «Lamento - conclui o Diabo - esta sua alma que me bate à porta, está equivocada quanto à sentença. O seu repouso é no Reino do Céu». E, não lhe perguntando mais nada, toca a campainha, chamando o servente, e dando-lhe ordem para conduzir aquela alma ao elevador que a levaria ao Céu, pois que era aí o lugar do seu eterno repouso.

Aqui em Portugal, o filme termina exactamente no momento em que o elevador arranca, deixando as plateias penduradas quanto ao título do filme, pois não vêem qualquer coerência com a história.
Eu, por acaso, nesse tempo estava fora do país como já referi, mas vendo o filme, que ao tempo era uma obrigação para as coisas do espírito, achei-o uma obra de arte e o seu título magistral e de grande consenso humano e crítica subtil, contrariamente ao que em Portugal se ajuizou.
A resposta a esta flagrante contradição quanto à justificação de um título de sentido oposto, estava somente neste pormenor: em Portugal, o ditador empedernido, informado do guião da história, manda que a Censura corte o final do filme, quando o elevador arranca para o Céu, eliminando a cena da sua chegada ao Paraíso Celeste, que no original era assim como observei: a chegada ao destino, e a alma penada («alma do purgatório que o povo ignorante supõe aparecer em figura humana por expiação de algum grande pecado», segundo o Dic. Morais Silva, Rio de Janeiro, 1899) preparando-se para sair, calha que nesse exacto momento entra uma diva que, essa sim, ia recovada para o Inferno, o que fez com que o recém-chegado, após uma breve hesitação, resolvesse reentrar no habitáculo donde saíra, clamando: «O CÉU PODE ESPERAR», frase que Salazar achou pecaminosa e a atitude desrespeitosa e herege. O elevador desce. A história finda.
O MAGAREFE - A amputação mutila tudo. Salazar dorme tranquilo sem escrúpulos estéticos, fabricando um aleijão sem sentimento de qualquer espécie. Há memórias e memórias. Umas de circunstância, outras as dos Povos que não se esquecem por mais lixívia que os sucessores, que os há e activos, consumam. Por isso se avalia, por este exemplo, até que ponto o povo português foi amputado de valores de toda a espécie, especialmente a dignidade, que hoje anda pela rua da amargura. Conclusão: há temas antigos que nunca perdem actualidade.

Dirigindo-me agora a João Lopes, quero felicitá-lo pelas suas intervenções, de muita classe, que eu sempre leio com prazer. Agradeço-lhe ter-me dado azo a refrescar ideias e sentimentos. Aprende-se.
Fernando Vieira de Sá
Lisboa, 6 Fevereiro de 2010

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

MARIA ELVIRA [1917-1999]


No dia 5 de Fevereiro de 1917, faz hoje 93 anos, nasceu em Lisboa Maria Elvira Andrade Mendes de Magalhães. À semelhança do que fizemos no ano passado, deixamos aqui algumas palavras de Fernando Vieira de Sá sobre Maria Elvira, a companheira de tantos anos, colhidas no livro Viagem ao Correr da Pena:
«Já após a sua morte, em 1999, li pela primeira vez o seu diário sintético (5x8cm) de que desconhecia a existência, encontrando-o casualmente nos seus haveres. Era um diário escrito em curtas frases que exprimiam sentimentos do tamanho de poemas sem nunca se pressentir arrependimento ou contrariedade, mas onde se exprimiam relevantemente a saudade do filho, a saudade de todos, a dedicação ao trabalho de ambos e a coragem de enfrentar o perigo com serenidade.
[...]
Esta pequenina agenda nunca a tinha visto. Está escrita com uma letra minúscula que mal se lê sem lupa. Estas frases soltas quase reflectem toda a rotina da nossa vida entre o trabalho e a pressão da guerra [FVS e ME estavam em Londres, em plena Guerra], entre as saudades e a chegada de uma carta que tardava, entre um warning (sereias que anunciavam a aproximação de bombardeamentos inimigos) e um all clear (anunciando céu limpo).»